30 de junho de 2005

Amanhã é pior dia

Pela primeira vez desde a sua entrada em vigor, em 1986, o IVA passa a ter em Portugal a taxa normal de 21 por cento. O aumento, de 2 pontos percentuais, é o cumprimento de uma das mais badaladas promessas do Partido Socialista durante a campanha eleitoral, garantindo que não aumentaria os impostos e que não faria o discurso da tanga. Fá-lo com a mesma intenção e no declarado propósito de combater o famigerado défice que o cidadão comum não sabe sequer o que é. Anuncia-o o governo com falinhas mansas, dizendo que são sacrifícios que pede aos portugueses para construção de um futuro melhor. Como se o Estado alguma vez tivesse pedido ou pedisse ao cidadão vulgar fosse o que fosse. O Estado, de forma prepotente e à força de cargas policiais se for preciso, nunca pediu nada. Sempre, de forma ditatorial e absoluta, se limitou a exigir. Depois sim, há os interesses corporativos que exigem. Porque não chove ou porque chove de mais. Porque faz muito calor ou porque faz muito frio. Porque o vento sopra de norte ou porque sopra de sul. O Estado, ganancioso, reclama, esbraceja, mas concede. Sempre muito, na sua óptica. Sempre pouco, na óptica das corporações.

Quem não pede é o operário caído no desemprego porque uma empresa qualquer decidiu mudar-se para a Roménia, onde pagará um salário mínimo cerca de cinco vezes menor do que aquele que vigora em Portugal, o país mais atrasado da União Europeia dos quinze. Nem sequer valeria de nada que o fizesse. Por falta de dispositivos legais que acolhessem esses pedidos, por falta de ouvidos do Estado que se preocupassem com os mais pequenos e os mais fracos, como se a subsistência fosse questão de alguma importância com que devesse preocupar-se o Governo da República e o orçamento. A subsistência dos pequenos não é nada se comparada com o raio da terra, não se iguala a cem dias de nenhum executivo, fica a milhas do custo da Centro Cultural de Belém e do défice da Expo 98 e até a léguas dos vencimentos dos administradores da Caixa Geral de Depósitos e da pensão, por invalidez, do Ministro das Finanças.

Mas a partir de amanhã o Estado aumenta a margem de lucro com que autoriza a comercialização das peúgas, das cuecas, das camisas e dos barretes que ainda usam os campinos da lezíria ribatejana. Se o Estado, com falinhas mansas e boas maneiras, nos não pedisse nada, pagaríamos 1.000 escudos por umas cuecas vulgares. Assim vamos pagar 1.210. Mais 210 escudos ou seja, quase mais um quarto do respectivo valor, incluindo já o lucro do dono da loja. O Estado não é um comerciante, nem na pior acepção do termo. Mas é garantidamente um ladrão, na melhor acepção da palavra. Condição de que, aliás, ninguém de bom senso ainda ousava duvidar!

365 dias com árvores

Segundo um antigo ditado popular, quem muito fala, pouco acerta. Por isso mesmo serei curto no discurso e parco nos encómios. Mas o Dia com árvores completa hoje um ano de vida, um sítio que eu pensava ter existido desde sempre. Regular, sóbrio, superiormente ilustrado e eficaz. Que continue, porque me serve diariamente o café da manhã. E porque me assegura a informação de serviço público que mais ninguém me oferece na cidade. Parabéns!

[A imagem, despudoradamente, foi roubada daqui. As desculpas e os agradecimentos devidos: muito obrigado!]

29 de junho de 2005

Avenida dos Aliados

O Porto tem perseguido, com afinco, a qualificação como capital nacional do disparate. E o que choca é verificar que, face à intensificação dos esforços, está cada vez mais próximo do reconhecimento e do sucesso. Felizmente as cidades - mesmo a antiga, mui nobre e sempre leal e invicta! - não podem nunca confundir-se com os homens ou com as mulheres que, transitoriamente, abraçam a roda do leme e as dirigem. São apenas situações de passagem que deixam cicatrizes e que, desgraçadamente, se repetem cada vez com maior frequência e tendem para a eternização.

Além Douro o Porto tem, de longa data, a fama de cidade de província, de clima agreste e aspecto triste, patente nas frontarias de granito descuidado e sujo, de onde muitas vezes provêm indivíduos de aspecto estranho e camisas de flanela aos quadrados, parecendo antigos pescadores da Póvoa. Onde um café, que se está mesma a ver que é uma bica, se designa intrincadamente por cimbalino. Até a pronúncia do norte, para além da canção com o mesmo nome, é diferente e tema de descabelado gozo.

É extensa a lista de obras dispendiosas e inúteis que, a bem da comissão e do provento, têm sido promovidas na cidade nos últimos anos. Depois do 25 de Abril o primeiro presidente da Câmara que foi reeleito após um primeiro mandato foi o Dr. Fernando Gomes, imposto pelo Partido Socialista, com o beneplácito do vitalício vereador Gaspar e importado da foz do rio Ave. E viu-se no que deu porque deveria ter sido mandado para casa, para o Parlamento Europeu ou para o Ministério da Administração Interna logo que esse primeiro mandato terminou.

O Dr. Rio, passados quase quatro anos, ainda não sabe quais as obtusas razões que levaram à sua eleição, ele que nunca pensou sê-lo. Mas, investido no cargo, passou a sentir-se predestinado para ele e inspirado pelas mais diversas divindades para o exercício das funções. Não se sentiu e não se sente ao serviço nem da cidade, nem do eleitorado. Porque nenhum político, mesmo que regional e transitório, alguma vez se sentiu ao serviço fosse de quem fosse, a não ser o dele próprio. Vai daí sente-se assim um género de régulo, pequeno reizinho de uma qualquer tribo africana, com poderes absolutos que, por má imagem, apenas não permite o enforcamento dos profissionais do contra na Praça da Liberdade.

Mas permite decidir tudo, mesmo irracionalmente, ao arrepio de todos e de toda a gente. O que se passa com o túnel de Ceuta não é exemplo de nada. É apenas mais um caso com enredo suficiente para uma das escabrosas histórias do Sr. José Vilhena. O Dr. Rio, julgando cada portuense como um atrasado mental, manda afixar painéis de grandes dimensões e proclama que a obra se não acaba por simples birra da ministra, no decurso de um período menstrual. Esperando-se que o embargo apenas seja levantado com a menopausa! Como se alguém pudesse entender que uma obra fosse sendo feita sem se saber que seria mais que um buraco. Depois logo se veria onde daria mais jeito que voltasse à superfície. Directamente no parque de estacionamento subterrâneo a construir em frente aos Paços do Concelho. Com acesso directo aos serviços de urgência do Hospital de Santo António ou ao gabinete do desembargador de turno no Palácio da Justiça. Mesmo em frente ao Palácio dos Carrancas, com entrada directa para os salões de exposição. Convenientemente em frente à residência do próprio Dr. Rio, com corredor para peões e para bicicletas, prevenindo a circulação de caninos e de crianças.

De há uns tempos que se discute aquilo a que o Dr. Rio chama a requalificação da Avenida dos Aliados. A Avenida dos Aliados, pela sua génese e tal como está, foi já suficiente motivo de chacota ao ser apelidada de avenida do bacalhau. O Sr. Germano Silva prestaria mais um inestimável serviço à cidade se lho explicasse e lhe dissesse porque é que os Paços do Concelho estão onde estão e a igreja da Ordem da Trindade se mantém naquele local. E, já agora, tentasse que o Dr. Rio entendesse que três toneladas de granito e uma dúzia de eucaliptos não restituem vida a coisa nenhuma como ele julga. Mesmo que os calceteiros, ou trolhas, ou lá o que é, se chamem Siza Vieira e Souto Moura, sejam filhos prendados de cidadãos ilustres e detenham prémios e condecorações de todas as proveniências.

Detenho-me nas duas folhas que retiro do "site" da Câmara do Porto e, mais do que com os bonecos, preocupo-me com as palavras. Pouco com as do Dr. Rio que anuncia gostar de partilhar comigo uma boa notícia. Como um bruxo africano com anúncio permanente nas páginas do 24 Horas deverá querer comunicar-me os números do último sorteio do euromilhões e, para meu bem, solicitar que vote nele nas próximas autárquicas. Um pouco mais com as subscritas por Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura. Desde logo porque começam por referir que o projecto para a Avenida dos Aliados surge da necessidade de reconstruir o lugar de três estações do metropolitano contíguas: São Bento, Aliados e Trindade. Ainda estou para perceber que razão esotérica justificou e que aturados estudos determinaram a implantação de uma estação nos Aliados, alguns 300 metros abaixo da Trindade. Para além de tão ilustres profissionais do risco não dizerem se os eucaliptos, quando adultos, poderão ser abatidos e remetidos à fábrica de celulose de Cacia ou se alguém, sorrateiramente, deverá atear-lhes fogo no pino de um Verão qualquer.

Não ficaria de consciência tranquila, a sério, se aqui não referisse o persistente esforço de Manuela Ramos e de Tiago Fernandes na defesa de património colectivo que os profissionais da política, ainda mais do que os do contra, são incapazes de reconhecer. Mesmo que sejam capazes de o trocar por meia dúzia de patacos, uma carrada de tijolo burro e meia tonelada de cimento a granel. Para betão!

28 de junho de 2005

Manutenção dos semáforos

Antigamente Portugal era o país do Entroncamento e o Entroncamento era a terra dos fenómenos. Ali cresciam nabos maiores do que os que fazem a sopa de Gondomar, abóboras mais redondas do que a lua cheia, vacas senhoras de todo o juízo e ferroviários a bater com martelos nas rodas de ferro dos comboios. Com a globalização o país corre o risco de se transformar num Entroncamento de todo o tamanho, muito semelhante a um labirinto cuja saída se não encontra, como acontece com o défice orçamental.

Com base em aturados e científicos estudos sobre o assunto, sujeitos a discussão pública e a manifestações de descontentes, o país moderniza-se. Constrói estradas com ou sem portagem, com ou sem corredor de "bus", com ou sem passeios para os peões. Da mesma forma que implanta aeródromos, com pistas curtas ou compridas, asfaltadas ou de terra batida, cruzando-se ou não com automóveis, camionetas de excursões para a Cova da Iria e peregrinos apeados a caminho de Santa Maria Adelaide.

Os cruzamentos estão bem sinalizados, têm semáforos instalados, dispõem de passadeiras pintadas no piso, a prioridade é pela direita - de quem se apresente pela direita, entenda-se! - excepto quando se andar à volta nas rotundas. Mas os semáforos são coisas eléctricas e mecânicas, com alguma electrónica integrada, que podem avariar por coisas simples como a fusão do filamento de uma lâmpada de incandescência que o respectivo inventor não foi capaz de prever na altura própria. E os peões, mesmo quando promovidos à condição devota de peregrinos, são tanto ou mais imprevisíveis do que as crianças e as galinhas, não respeitando regras e não aguardando nunca pela sua vez, como acontece nas paragens de autocarro e nas filas para as caixas dos supermercados.

Há dois dias, no aeródromo de Espinho, um imprevidente piloto, não reparando na avaria dos semáforos acabou por abalroar um automóvel. O acidente transformou-se em tragédia apenas porque o automóvel se incendiou e o condutor morreu carbonizado. Por sorte nenhum peão atravessava a passadeira e, por azar, nenhum polícia fora solicitado a regular o trânsito. Tivesse isto acontecido e não teria havido perdas de maior, nem materiais nem humanas.

No dia seguinte um especializado grupo de trabalho apresentava-se no local, agindo directamente sob as ordens de directores gerais e de secretários de estado. Mediu meticulosamente tudo o que havia para medir, incluindo a largura da pista, a altura dos postes e a distância ao areal da praia de Paramos. Pesou o que havia para pesar, incluindo o piloto e os destroços. E concluiu, muito convenientemente, que a praia deveria perder a bandeira azul, rescindidos os contratos de concessão e mudada de local. Quanto ao resto, tudo nos conformes com os regulamentos. E os serviços da polícia devem ser solicitados sempre que os semáforos avariem!

27 de junho de 2005

Seriedade política

À economia, como ciência, resta cada vez mais a aritmética dos números e a estranha alquimia dos políticos. E mesmo isto apenas enquanto a tabuada inteira não for definitivamente substituída por um qualquer chip programado que, com a mesma facilidade, ponha a soma de dois mais dois a dar cinco e o défice do orçamento a ser reduzido com o linear aumento da despesa pública.

No exercício da sua democrática ditadura de quatro anos acho que o suposto engenheiro Sócrates nem cumpre nem atraiçoa quaisquer promessas eleitorais que tenha feito no decurso da campanha. Por uma questão simples: é que ele foi tão vazio, tão vago, tão evasivo que não chegou a prometer fosse o que fosse. Limitou-se a enunciar alguns desejos pessoais como ver criados não sei quantos postos de trabalho, reduzidos os impostos, corrido do governo da Madeira a sanguessuga Alberto João e garantida a protecção de Nossa Senhora de Fátima.

Os seus desejos de chegar ao poder sem se comprometer são tão legítimos como os meus de enriquecer à custa do sorteio do euromilhões ou os de qualquer convicto maometano de chegar ao paraíso ainda a cheirar a pólvora e ser acolhido pelo número de virgens a que tem direito. Estranhos, todavia, têm sido os métodos usados para nos conduzir à felicidade terrena e para nos garantir a vida eterna enquanto se eterniza no poder por mais tempo do que o conseguiu o falecido sargento Mobutu.

Ainda agora, para que o país real - aquele que janta no Gambrinus enquanto ouve atentamente o ilustrado discurso da Lili Caneças! - pudesse aperceber-se de como faz horas extraordinárias, o governo foi apresentar um orçamento rectificativo em pleno fim de semana. Confortado com o rigor dos cálculos isentos e exactos do Dr. Constâncio, garantiu aos portugueses que iriam agora saber toda a verdade sobre o orçamento e sobre o défice. A verdade é que os portugueses não sabem o que é o orçamento, não entendem o que quer dizer défice e, a ele, não lhe perguntaram nada. E não têm memória da primeira e última vez em que um político, em funções governativas, tenha dito por engano alguma verdade. Excepção feita ao Sr. José Vilhena que, como reformado, optou pela respectiva pensão de mais de quinhentos euros e recusou a secretaria de estado do fomento da virgindade e protecção da virtude, por ser forçado a prescindir de um terço do ordenado.

Enquanto isso o governo anuncia sucessivos sacrifícios que pede aos portugueses. O governo não impõe e nem sequer exige. À boa maneira dos corpos de intervenção, pede educadamente aos portugueses que se sacrifiquem em seu benefício, enquanto lhes descarrega o cassetete nos costados e lhes fractura, pelo menos, três costelas. Posto isto, combate o défice fazendo nomeações políticas, fixando verbas para representação e nomeando o Dr. Fernando Gomes para salvar a Petrogal depois de sucessivamente ter salvo os concelhos de Vila do Conde e do Porto, autorizado a construção do mamarracho a que chamam Torre das Antas e prestado vassalagem ao Sr. Pinto da Costa.

Ainda ninguém lhe ouviu falar foi na proliferação das quintas que são as autarquias e as empresas municipais, os institutos públicos e os serviços autónomos, as empresas públicas e aquilo que elas mesmas denominam por grupos económicos. Como na Casa da Música, os respectivos administradores estabelecem os seus próprios ordenados e benesses ao arrepio da lei e da tutela, sem risco e sem sanção. O governo, de forma louvável, quer que o Estado emagreça e prescinda de muitos milhares de funcionários inúteis e em excesso. E enquanto o apregoa, prolonga a idade de reforma, aprova a criação de freguesias, promete novos concelhos, combate a droga e a sida com cartazes afixados na via pública por empresas privadas, detidas por amigos e familiares.

A actual estrutura do Estado só tem salvação em novas invasões, com os franceses descrentes do não com que, em referendo, recusaram um utópico tratado europeu. Porque, ao que parece, a distorcida estrutura que ainda vigora deve-se às invasões do início do século dezanove!

22 de junho de 2005

Dicionário

Embaste. Forma do verbo transitivo embastar. Segurar com bastas. Acolchoar. Basta. Cada um dos pontos que atravessam o colchão para reterem o enchimento. Do colchão. Pequena peça de pano que remata esses pontos. Do colchão. Prega de saia e só de saia, mais prega nenhuma. Barra de vestido, diferente das barras dos portos de Lisboa e de Roterdão. Interjeição. Chega! Não mais! Não usado por políticos, excepto em relação a aumentos salariais para a função pública e para o sector da construção civil. Termo recentemente ouvido ao engenheiro Van Zeller e ao psicólogo de renome internacional Kumba Ialá, de férias no arquipélago dos Bijagós.

Embeste. Forma do verbo embestar. O mesmo que bestificar, completamente diferente de beatificar. Verbo transitivo. Tornar como besta. Tornar estúpido. Brutificar. Verbo reflexo. Bestializar-se. Embrutecer-se. Aparvoar-se. Sem contributo de especialistas, de tratados ou de manuais. Autodidacta. Estado natural de muita coisa e de muita gente, mesmo exibindo diplomas universitários, ostentando pesados fios de ouro ao pescoço e réplicas perfeitas de relógios de bolso na algibeira das calças de ganga à venda na feira de Carcavelos e de Custóias.

Embiste. Inexistente. Possível grafia incorrecta de imbeste, derivado de investe. Termo antiquado. Idade da pedra. Margens do Douro. Ambas, norte e sul. Aplicado aos toiros bravos nas lides da praça da Moita. Também se usa em relação aos agricultores que prescindem do tratamento por empresários e que são beneficiados pelos fundos da política agrícola comum. Servem para a aquisição de automóveis e contratação do serviço de alfaias provenientes das ruínas do leste europeu e que se apresentem com bom aspecto ou indícios de pouco uso. É improvável que o presidente da república o venha a pronunciar. Ainda mesmo que visite o distrito de Bragança, se passeie pelas noites quentes de Verão e ouça o desabafo de fiéis esposas encornadas sem apelo nem agravo pelo ancinho dos maridos.

Emboste. Forma do verbo transitivo embostar. Sujar com bosta. Cobrir de bosta. Emporcalhar. Encher de merda. Capacidade de fazer merda com tudo o que se tiver à mão, sejam medidas de combate à inflação, rigorosos cálculos de défices com aproximação à décima milésima ou apitos de plástico fabricados na indústria de Leiria. Bosta. Excremento de gado bovino. Bostar. Sujar com bosta. Expelir bosta. Cagar de bois e vacas, em pleno campo, na lezíria. Dizer sandices. Parvoíves, ditos tolos ou merdas com estas. E muitas outras, em público ou privado, seja qual for o dia da semana e a estação do ano. A de S. Bento fica de fora para serviço do Dr. Rio e das obras do Metro do Porto.

Embuste. Substantivo masculino. Mentira artificiosa. Ardil. Patranha. Logro. Manha. Astúcia. Estratagema. Estratégia muito vulgar entre vendedores de banha da cobra, automóveis em segunda mão e pentes para carecas em tartaruga que não tenha sido montada - no bom sentido, norte-sul - pelo venerando Dr. Mário Soares. Operação comercial realizada por banco sem vocação que, por esse facto, a comete a organização especializada e independente cujo capital social detém a cem por cento. Termo utilizado em tom coloquial, mesmo em actos públicos, para salientar que a crise, as sardinhas e os pimentos dos santos populares devem ser pagos por quem já esteja habituado. Ferramenta para assegurar a rentabilidade e forçar o crescimento moderado dos lucros a taxas não inferiores a 35 por cento. E adquirir o mangerico!

21 de junho de 2005

Citibank do caraças…

Ainda há pouco tempo Bagão Félix, um infeliz ministro das finanças e um finalmente feliz benfiquista se insurgia contra o preciosismo do rigor a que o governador do Banco de Portugal levara o cálculo do défice. O rigor matemático do Dr Bagão não comporta decimais e extingue-se na taxa de rentabilidade e no património líquido do clube que venera. O que lhe complica o entendimento de um défice de 6,83 por cento, que não é de 6,8 mas que também não é de 6,9. Importa salientar, em todo o caso, que ligeiramente mais rigorosos são aqueles que persistem no cálculo do valor de pi com um número de decimais mais extensa do que a costa portuguesa, de Caminha a Vila Real de Santo António.

Mas nem por isso pode o governador do Banco de Portugal ser classificado como um homem de rigor. A não ser, talvez, na defesa dos seus interesses, do seu ordenado e das suas múltiplas mordomias. E nas lágrimas de crocodilo com que recomenda a austeridade para os outros e grita contra o excessivo endividamento das famílias. Em Portugal, como se sabe, não há nem empresários nem gestores e os poucos que há - se os há, como as bruxas! - são simples excepções que mais não servem do que para confirmar o que se diz. Os gestores ou são reformados da política ou são transitoriamente corridos dela por acto eleitoral que levou ao poleiro o partido que estava na oposição.

As famílias e as pessoas isoladas que a não constituíram são violentamente pressionadas no sentido de se endividarem. Para benefício da única actividade que a banca, de facto, hoje desenvolve: a agiotagem. Com taxas de juro que não são negócio mas roubo, com impostos bonificados que atentam contra a moralidade vigente até no Sudão, com lucros que crescem exponencialmente e que, nem assim, satisfazem a curta classe de banqueiros que dá emprego a inúteis ex-governantes.

Algures chama-se a isso simples liberalismo, sistema em que vale tudo, até mesmo tirar olhos e praticar o incesto. Mas a banca alicia toda a gente para o consumo das maiores inutilidades que, a preço de ouro, se vendem nas casas dos trezentos e nas lojas dos centros comerciais. Depois é preciso, como dizem, "fidelizar" o cliente ou, usando mais simples vocabulário, evitar a todo o custo que a dívida se extinga. Por causa da dependência a que os desgraçados ficam sujeitos, mais agarrados do que a drogas duras.

Hoje, data em que se assinala o início do Verão, passei-me por completo. Há alguns anos, no Via Catarina, em pleno centro do Porto, um jovem conseguiu impingir-me um cartão de crédito do Citibank. Pouco uso tem tido o cartão e, por ser americano, já foi recusado em Cuba. Eu, pouco adepto deste plástico perigoso e poluente, utilizo moderadamente um proletário Visa Universo para pagamento de um ou outro almoço nas minhas sucessivas idas a Ourém. Há tempos comecei a receber correspondência endereçada, felicitando-me porque a minha conta bancária ia aumentar com um simples telefonema. Telefonei. Não! Não pretendia transferência nenhuma. Apenas exigia ser eliminado da lista dos destinatários das sucessivas circulares. A aplicação informática não o permitia e isso não era possível. A informática é uma coisa com as costas tão largas como o governo anterior, seja ele aquele que for, de forma que me calei porque o tempo, seguramente, era de inverno tristonho e cinzento.

Hoje chegou-me novo convite. Liguei para dizer que estava farto e que isto não ia prolongar-se pelo Verão fora. Atendeu-me um jovem com sotaque "do lado di lá", provavelmente falhado no futebol da superliga, de salão e de praia. Disse-lhe que não recorria ao crédito que me ofereciam porque, apesar da idade, tenho uma mãe extremosa e compreensiva que me chama de parte todos os sábados depois de almoço e me mete na palma da mão, muito enroladinha, uma nota de cinco euros a título de mesada. Retorquiu-me que se não queria, não utilizava. Respondi que a minha caixa de correio faz parte da minha casa, é parte do meu império, sou eu que dito as normas e que atiço os cães a quem se não conformar com elas.

Cancelado o cartão, peguei numa tesoura e retalhei-o aos bocadinhos. Tive um prazer quase sobrenatural. Ainda sinto ter reduzido a fanicos o filho da puta do banco. Se calhar logo à noite lá me ligam mais dois, que aguardo com fisgas nos bolsos e montes de seixos na boca. Não resolve nada porque a questão requer outras medidas. Mas contribui para que durma tranquilo!

20 de junho de 2005

Grande prémio

Não vale a pena continuar a chover no molhado e repetir que esta estranha espécie de país me desencanta. Ainda por cima quando há muito deixei para trás as minhas leituras surrealistas e a minha grande compreensão para com o movimento e a sua permanente rebeldia. Mesmo que continue a achar, por mim, que nunca vi desenhos à pena como os que vão subscritos por Artur do Cruzeiro Seixas.

Mas por mais que pense ou tente fazê-lo, por mais que converse com os conhecidos e os amigos e por mais que leia António Barreto e Vasco Pulido Valente, não consigo descortinar o serviço público que a RTP apregoa. Os subordinados de Almerindo Marques - mais um reformado a exercer um cargo que lhe complemente a pensão e ajude à conveniente educação dos netos - entendem que serviço público, em primeiro lugar, é futebol. Seja qual for a hora, o dia da semana, o escalão ou os intervenientes. Pode ser um sub-20 qualquer, jogado a feijões, na Somália ou no Cambodja. Para a RTP é serviço público, tem direito a enviado especial e a transmissão directa. Mesmo em estúdio o enciclopédico Gabriel Alves há-de pronunciar-se sobre a qualidade do relvado, a habilidade inata do número sete e a falta de músculo dos defesas centrais para o confronto aéreo.

Ainda ontem, no telejornal da noite, a RTP alinhou, em segundo plano, temas nacionais absolutamente irrelevantes que nem sequer importavam ao grupo Espírito Santo e muito menos a este, mesmo sem grupo nenhum. Um incêndio qualquer, com labaredas a atingir a altura de um prédio de cinco andares. Uma inoportuna greve de professores que poderia prejudicar a realização dos exames previstos para a canalha das escolas. Os riscos que decorriam do calor excessivo que se tem feito sentir. A descoberta, algures em Caminha, de uma lancha rápida carregada com mais de meia arroba de uma droga qualquer.

A RTP abriu o jornal com o acontecimento extraordinário do Grande Prémio dos EUA ter um português colocado na terceira posição, entre seis concorrentes. Quando, recorde-se, até hoje apenas o visconde de Nicha Cabral e o comerciante de automóveis Pedro Lami tinham conseguido partir-se todos e deixado as provas autenticamente feitos em bocados. Tal feito justificou uma segunda chamada ao directo com a prova a decorrer, uma chamada à bandeirada de xadrez final, mais uma à cerimónia do pódio onde o coitado do português ficou sozinho a espalhar champanhe e ainda uma outra a uma conferência de imprensa a que os dois pilotos da Ferrari - que ocuparam as duas primeiras posições - não puderam furtar-se por obrigações contratuais. Curiosidade terá sido o facto de nunca ter havido grande prémio em que apenas tivessem largado seis automóveis. O que envergonhou toda a gente, começando pelos que faltaram e que produziram um comunicado conjunto a desculpar-se e acabando pelos que venceram, mesmo sem querer. E que se furtaram às festividades da vitória.

Tal é, afinal, o umbigo português: magnético, irresistível e prenhe. Que dá muito mais importância à construção de estádios do que à edificação de hospitais e à comparticipação nos medicamentos. Mesmo quando as listas de espera para as cirurgias não preocupam o ministro e vão sendo reduzidas pelos que morrem da doença ou da espera pela cura. Ainda mesmo que, por precaução, esperem sentados.

14 de junho de 2005

Para sempre, Eugénio

Por casualidade, que me falta a morbidez com que esta desumana gente se atira a farejar casamentos e funerais. Assim, de repente, vi-me à porta do jardim Marques de Oliveira, atravessando-o de lado a lado. Do nome de S. Lázaro plantou-lhe a municipalidade uma lápide espetada a uma das entradas. E enterrou-lhe recordações e saudades tantas, deixando-lhe apenas magnólias magníficas e tílias decepadas mas, apesar de tudo, nobres e altivas. O jardim é hoje povoado por reformados com pensões de miséria que se alegram ao sol do Verão que se anuncia e ao jeito da trapaça que se pratica no jogo viciado da sueca e da renúncia. Por putas desamparadas de chulo, há muito fora do prazo de validade e devendo já alguns anos à idade da reforma. Ainda na esperança do engate fortuito e do dinheiro para a pensão e para a sopa. E por este perfume suave que as tílias em flor levam pela rua fora, persistente e tranquilo, sem o rubro de sangue que as acácias deixam pelas ruas poeirentas de Benguela.

Um só batedor à frente, afastando do percurso quem, por ignorante ousadia, normalmente fosse a debruçar-se sobre o rio e verificar a ferrugem que arrasta para a queda uma jóia como a ponte de D. Maria. Um primeiro carro funerário, com meia dúzia de gatos-pingados ataviados a rigor, trazendo nas almas a consternação das terças-feiras e nas faces a máscara com que se levam à tumba passageiros ilustres. E ainda supõe-se que uma urna, escondida sob uma bandeira tristonha da cidade. Depois outro carro funerário, carregando só flores, de todas as cores, de todas as espécies, de todas as proveniências. E alguns carros luzidios e enormes, com os vidros fumados e motoristas de farda, solitários no banco da frente.

Não foste, de todo, nenhum António Aleixo, popular e espontâneo. Burilaste o ritmo meigo e quente das tuas palavras à força de cinzel, em intermináveis noites de insónia e com a ajuda de cântaros de chá, enquanto espumando o rio se atirava raivoso contra o mar. Nem tu tremeste nem tão pouco as palmeiras do Passeio Alegre se assustaram. Hoje levaste-nos as mãos e deixaste-nos os frutos. Amanhã, sem carácter oficial, alguém se ocupará da tua obra e a levará por aí. Fará com que todos possam lê-la e entendê-la. Para sempre, Eugénio!

13 de junho de 2005

Estatísticas

Para ser franco nunca dei ao INE e aos seus indicadores estatísticos a menor credibilidade. E isto independentemente do assunto a que se refiram, desde a inflação ao desemprego e à demografia do país. E isto ainda, também, para além do seu cortejo de académicos, doutorandos, amanuenses e contínuos de leva-protocolo. E dos seus dirigentes, exemplarmente seleccionados entre os independentes e nomeados por cada sucessivo governo, sem a mínima preocupação quanto à respectiva filiação partidária ou à sua inclinação ideológica. À semelhança do que, aliás, tem sido prática também exemplar da democracia em que sobrevivemos e onde apenas são excluídas as mulheres, os sem abrigo, os pobres, os desempregados e os que, pelo aumento dos jornais, não podem ler as crónicas do senhor Eduardo Prado Coelho, professor universitário.

Esta posição tem, obviamente, várias razões de ser. Quando minimamente me mantenho atento às coisas, verifico que a gasolina aumentou trinta por cento, o pão dez, a habitação quinze e o arroz carolino doze. A alquimia estatística do INE, depois de aturados e complexos cálculos, invariavelmente e em consequência, fixa a taxa média de inflação em 2,4 por cento, sem aproximação às centésimas para conforto e descanso do ministro no desemprego Bagão Félix.

Coisa idêntica acontece com a crescente taxa de desemprego, numa tentativa desonesta de nos aproximar da Europa dos doze que conhecemos e em que nos integrámos. Sem nada a ver com os vinte e cinco, alguns geograficamente localizados em casa do coiso mais velho, que ninguém sabe onde fica, e sem o convívio com os que, por grosseira falta de informação, votam não nos referendos sobre uma proposta de tratado a que, pretensiosos, já chamavam constituição. Tanto assim é que em Portugal os profissionais activos, com a característica comum de militarem em partidos políticos, se vêem forçados a acumular cargos, tarefas e funções como acontece com o major Valentim de Loureiro, vereadores das diversas autarquias e até mesmo reformados por incapacidade física absoluta que o governo literalmente obriga a comandar a PSP e a ocupar cargos ministeriais, com as canseiras que decorrem das viagens a Bruxelas e das passagens por Estrasburgo.

Quanto à demografia o INE atribui-nos cerca de dez milhões de habitantes, dos quais seis são benfiquistas do coração, estando em curso uma recontagem solicitada ainda pelo senhor Trapatoni e apoiada pelo senhor José Veiga, que se pensa poder chegar ao dobro. Apesar disso, os campos agrícolas do país, incluindo a lezíria, estão de pousio e a palha que produzem não chega para alimentar os burros de uma só quinta. Parte-se do alto Minho e chega-se à ria Formosa, atravessando todo o Alentejo, e não se consegue divisar um só compadre que seja, justamente descansando à sombra protectora do chaparro. Muitas vezes nem mesmo os chaparros se encontram no devido lugar, certamente por falta de funções.

Apenas me convenci de que poderíamos ser mais no passado dia dez de Junho quando o presidente Sampaio desatou a condecorar uma fila de personalidades mais extensa do que as que se formam nos jardins do palácio da Ajuda para o beija-mão aos primeiros-ministros sempre que estes tomam posse. E prometem fazer-nos felizes, extinguindo impostos obsoletos, descendo o preço dos combustíveis, aumentando o valor já significativo das pensões e substituindo a Associação Nacional de Farmácias por uma grande superfície com o inevitável Dr. Cordeiro à frente. Mas, mesmo assim, uma ou outra dúvida acabou por prevalecer. Se fossemos assim tantos o Dr. Sampaio certamente não teria que condecorar a D. Fátima Campos Ferreira. Teria certamente mais por onde escolher.

5 de junho de 2005

As reformas

O país clama por reformas desde a idade média. À falta de comunidade internacional que desse pelo nome, ainda não tinha sido reconhecido pela suprema autoridade do Papa e já o fazia. De forma original que a soma dos anos foi progressivamente transformando em obtusa. Fá-lo sempre a partir da oposição, e nem mesmo o regime autoritário a que o sujeitou o Estado Novo alterou esta ordem de ideias. O poder, por seu lado, afirma e reafirma as reformas feitas e aquelas que estão em curso. Sem que ninguém dê por elas e seguramente sem que alguém, levemente que seja, se aperceba dos seus resultados.

Ainda não há três meses que o engenheiro Sócrates garantiu nas urnas o exercício ditatorial do poder - a que chama estabilidade - por quatro anos e já deu o dito por não dito, aumentou as manifestações públicas de hipocrisia e salientou, batendo piamente com a mão no peito, o seu desinteressado patriotismo e o de todo o seu gabinete. O governo que dirige tem sido como um cão que morde pela calada. Não se lhe ouve um latido e, de repente, temo-lo ferrado à barriga das pernas.

Mas, honra lhe seja feita: o país clamava por reformas e aí as tem. Nunca houve tantas, e tão materialmente significativas, em tão pouco tempo. São, pelo menos, as do ministro das finanças, do ministro das comunicações e do governador-geral da Madeira. Surrealista é que o primeiro tenha convocado apressadamente os jornalistas, a um sábado à tarde, sem revelação prévia da razão e que estes, reverentes e obrigados, tenham acorrido diligentes e dóceis, como carneiros. Para ouvirem uma curta declaração que, não fosse a forma tosca e descuidada, poderia confundir-se com a sábia ironia de uma poema de Alexandre O'Neil.

É um homem de tomates o senhor Ministro das Finanças! Embora a globalização leve a crer que tenham sido criados em estufa e chegados de Espanha, sem necessidade de qualquer filtro alfandegário ou controlo de qualidade. Diz ele, antes que ninguém o faça, que a pensão que aufere por seis anos ao serviço do Bando Banco de Portugal é legal - o que não se discute - e legítima - o que não se vislumbra! E acrescenta até, para que não subsistam dúvidas, estar ele próprio envolvido na redacção de legislação que há-de sobrecarregar o fraco e - termo espúrio e moderno - agilizar o forte. Ao mesmo tempo que se declara prejudicado, como funcionário público e guarda-livros chefe do país, com o aumento da idade de reforma para os 65 anos. Quando afinal se sabe que é reformado pelo Bando Banco de Portugal desde os 49 anos de idade, com a pensão mensal de 8.000 euros, cerca de 1.600 contos. Ridícula, se a compararmos com o ordenado do senhor Simão Sabrosa ou do senhor Costinha, a quem também chamam ministro, mas sem pasta de carregar papéis. E deixa irremediavelmente em pranto todas as respeitáveis viúvas de mais de oitenta anos de idade quando revela que, pessoalmente, será atingido pelo escalão de 42% que ele próprio recentemente criou no âmbito do IRS. À semelhança aliás do que igualmente irá acontecer com o Xico da Jaquina, picheleiro por conta própria, morador nas Escadas do Codeçal, mas sem nenhuma pensão do Bando Banco de Portugal.

P.S. - A D. Judite de Sousa, que o país conhece como carinhosa esposa de um benfiquista ferrenho e que, se lho perguntarem, responderá sem hesitações exercer a profissão de jornalista, tem a faculdade de confundir as coisas com a mesma facilidade com que a que a luz se propaga no vácuo. Tanto assim que agora confunde excelência com dinheiro quando, numa croniqueta que lhe pagam para escrever semanalmente, pergunta se será possível levar para o Governo a excelência quando um ministro ganha setecentos contos por mês e responde de imediato que não. Mesmo sabendo-se que os lugares de ministro não são preenchidos por concurso público, invariavelmente repetido por falta de concorrentes e que os candidatos se atropelam na fila, em bicos de pés, gesticulando a ver se alguém repara neles. Acontecendo mais, segundo me garantem de fonte segura: que o Xico da Jaquina, picheleiro por conta própria, morador nas Escadas do Codeçal, nem responde aos concursos nem participa da fila. Nem vai ser ministro, apesar da falta de excelência para as contas públicas!

2 de junho de 2005

Referendo constitucional das autarquias

O regime político do país é uma ditadura alternadamente exercida por dois partidos, eventualmente com a cúmplice participação de um outro partideco mais ou menos fantoche - onde é que já vi esta expressão? - que ajude à formação daquilo a que os políticos profissionais designam por maioria estável e coerente. São 116 representantes num universo de 230 em que 226 labutam esforçadamente na defesa dos quase dez milhões que habitam no extremo mais ocidental da Europa. Mais 2 que defendem a curta meia dúzia de emigrantes que já falam francês como o Dr. Mário Soares e alemão como o Fernando Meira. Os 2 restantes representam as sedentárias e insignificantes comunidades de fora da Europa, obrigando-se a mais longas deslocações, mais frequentes viagens e mais numerosas jantaradas onde os prazeres de Baco saem ao preço exorbitante a que em Antuérpia se vendem, lapidados, os diamantes da candonga angolana.

Por comodidade e exigência da Desunião Europeia o regime dá pelo nome de democracia representativa. Expressão válida mesmo quando os dois partidos com mais adeptos inscritos ainda não conseguiram extirpar o regime dos grupelhos que ou não elegem nenhum deputado ou chegam a registar votações que são percentualmente tão vergonhosas como o défice que tanto atormenta o governo e o Dr. Vítor Constâncio. De resto, entre ser representado pelo Dr. Salazar ou pelos 230 ilustres deputados que se sentam em S. Bento - quando sentam! - há apenas uma diferença de 229 unidades, numericamente imaterial, mesmo que se não chame à baila a governanta D. Maria.

Ninguém melhor do que o segundo sargento do exército belga Joseph Desiré, promovido por mérito e despacho próprio ao elevado posto de general de muitos biliões de fortuna, sob o apodo de grande leopardo e o cognome de Mobutu, garantiu a digna representação do povo zairense. Sem que se sugiram comparações em que é perito o Dr. Jaime Gama, ninguém representaria o povo da Madeira melhor do que o Dr. Alberto João, sacrificadamente entregue ao trabalho mesmo depois de reformado da função pública com uma pensão de merda, cujo valor me impede, por decoro e esmerada educação, de pensar sequer em repeti-lo.

Agora, em mais um embuste que lhes garanta a alternância no ministério e a fartura da ração na gamela, os dois agentes democráticos da ditadura conluiaram-se mais uma vez. Depois da peça literária que foi a pergunta que injustamente foi rejeitada ambos acordaram em que o referendo sobre o tratado constitucional europeu se realize em conjunto com as próximas eleições autárquicas. Por mera questão de economia e para benefício do défice como, por esquecimento, ainda não disseram o Dr. Marques Mendes e o Eng. José Sócrates. Mesmo que não tenham outras vitais preocupações que não sejam a economia, com o aumento dos impostos, as viagens de Falcon a Bruxelas e o bem-estar incondicional dos habitantes da Beira interior.

Por mim, a norte, vou esperar que o Futebol Clube do Porto ganhe o próximo campeonato. Para convocar para a Praça da Liberdade e para o dia das comemorações uma manifestação contra o IPPAR por causa do túnel de Ceuta. Nesse dia, se ainda tiver alguma coisa a ver com isto, até o Dr. Rio vai rasgar em público o cartão de sócio do Boavista. E o problema vai acabar resolvido!

1 de junho de 2005

Assembleia-geral

Os Correios são uma empresa pública a que, num momento de inspiração divina e infalibilidade papal, o sempre certo professor Cavaco resolveu chamar sociedade anónima de capitais inteiramente detidos pelo Estado. O seu objectivo, como havia acontecido enquanto os mesmos integraram a administração pública pura e dura, seria a prestação do serviço público de correios. A situação foi entretanto ultrapassada, o correio deixou de ser serviço público por troca directa com o futebol que a RTP transmite de segunda a domingo, sem interrupção. De facto não se divisa, nesta ensolarada manhã de quarta-feira, maior interesse público do que tirar a limpo o estado físico do senhor Nuno Gomes e as insuportáveis saudades da mulher que levam Trapatoni de regresso a Itália e ao acolhedor abraço da dita.

A partir de tal acto decisivo para o progresso do país, o bem-estar do povo português e o triunfo do sim no referendo sobre o tratado constitucional europeu, os Correios passaram a submeter-se ao Código das Sociedades como qualquer empresa que o senhor Belmiro de Azevedo tenha a vender legumes ou que o senhor Américo Amorim dedique ao fabrico artesanal de rolhas de cortiça. Em conformidade os sucessivos conselhos de administração passaram a proclamar a natureza privada da sociedade e a apregoar os inumeráveis benefícios dos respectivos métodos científicos de gestão. Com pompa, circunstância e o sonho nos bailes de gala no Palácio da Ajuda, os administradores passaram a ser eleitos em assembleia geral como o tem sido o senhor Pinto da Costa, no Futebol Clube do Porto, nos últimos vinte e tal anos.

Em termos de facto, como se sabe, o Estado nem sequer está exangue. Pura e simplesmente não existe. De forma que a assembleia geral de uma empresa pública não passa de um juvenil acto de masturbação de que não resultam filhos como cristãmente preconizava o ex-deputado, senhor João Morgado, apreciador da castidade e da poesia da D. Natália Correia. O ministro dito da tutela, como figura que vela pela segurança e acautela a inclinação fatal para o disparate, nomeia os administradores. Não segundo critérios que se compreendam e aceitem, mas de acordo com a devoção com que cada um deles se tenha empenhado na marcha do partido para o poder, no apadrinhamento dos filhos ou mesmo na mais evidente dependência do salário mínimo, do rendimento mínimo garantido, do rendimento mínimo de inserção ou do rendimento mínimo garantido. Para o sustento do próprio, dos descendentes e ascendentes, em linha directa ou colateral, incluindo primos e primas em décimo quinto grau.

Foi nesta atmosfera que os Correios realizaram ontem uma assembleia geral para eleição do novo conselho de administração, presidido pelo senhor Luís Nazaré. E libertando dos escombros a parda competência do senhor Carlos Horta e Costa, portador na lapela de um emblema com os apelidos, inventor do correio verde em homenagem ao Sporting do seu coração e à memória, sempre eterna, do falecido José Travassos. Criador das lojas como a que se pode visitar nos Restauradores e onde, a par dos livros da D. Margarida Rebelo Pinto, se podem encontrar detergentes para a louça, rolos de papel para uso nas casas de banho ou atrás das moitas, filmes em DVD que funcionem como motor de arranque para qualquer engate de circunstância. E, pasme-se, até mesmo selos comemorativos dos cem anos do Museu Nacional dos Coches.

A assembleia geral, como acto solene, realizou-se pelas 19:30 horas na Sede da empresa, à Rua de S. José. Um amanuense pertencente aos quadros do ministério da tutela apresentou-se no local, com ligeiro atraso, envergando o seu melhor fato domingueiro e trazendo numa pequena pasta de pele genuína a credencial do ministro que o mandatava para o acto. Foi recebido com aplausos, ainda mais intensos devido à fresca lembrança de que o Benfica ganhara o campeonato. Apresentou-se aos presentes e a si próprio, nomeou-se presidente e secretário da mesa, preencheu todos os pontos da ordem de trabalhos, incluindo os de antes da ordem do dia. Votou secretamente para se não sentir coibido pelo voto de braço no ar, procedeu à contagem e proclamou vencedor, por unanimidade, aclamação e despacho do ministro o senhor Luís Nazaré e seus coadjuvantes.

Depois disto longa vida se deseja ao camarada Mao Zedong. Eterna, já se vê, mesmo que este a recuse. A peça, entretanto, há-de seguir dentro de momentos. Com a interpretação a cargo de conhecidas competências como as que foram descobertas para a exploração dos petróleos…