29 de março de 2013

Dia de nevoeiro


É manhã de sexta feira, dia feriado, as ruas desertas, a chuva intermitente, a água escorrendo pelas paredes, pelos vidros, pelos corpos. Um nevoeiro persistente e às vezes leve, ocultando apenas o que lhe interessa, a primavera atrasada, os telhados encharcados, os portais das entradas. Quase a tacto, um café com as mesas vazias e o chão limpo, como se ninguém hoje ainda tivesse dado com ele e ousado entrar para um café. Não há nevoeiro lá dentro, apenas o desconforto da excessiva ordem das coisas, nem papeis ou lixo pelo chão, os tampos das mesas sem restos de açúcar ou pingos de café.



A televisão ligada, tudo monocromático, o roxo da quaresma pendurado nos altares das igrejas e no estuque dos tectos. O estúdio com figurantes circunspectos, a sentir que o esforço não vale a pena, os aplausos são mais vazios do que nunca, o dinheiro dos cachets arrecadado sem esforço, um pequeno complemento para as reformas de miséria, mais um quilo de arroz e um pacote de esparguete, a míngua adiada. Os apresentadores sem entusiasmo, não vale de nada tentar mudar o curso do rio, depois deste ter transbordado das margens e arrastado sucatas, utensílios e bocados humildes de vida, arrecadados ao longo de anos sempre bissextos. Para eles, em agosto, há de ser verão em qualquer sítio, uma praia deserta e de areia fina, águas verdes, a concentração de sal a arder nos olhos, a água a parecer aquecida nas panelas de ferro fundido, arrumadas junto ao calor cheiroso da lareira.

As empregadas de pé, quietas e apreensivas, nada que fazer, os rostos fechados, as luzes acesas, a China à espera dos lucros. A crise trouxe tudo o que há de pior, tem as costas largas, os maridos no desemprego, os filhos em casa à espera que a escola lhes dê uma côdea, mais do que a instrução que antigamente preparava para a vida. O ministro que não dorme porque se afirma sensível, preocupado com o estado social e o estado civil, não vá o processo de divórcio levar-lhe uma parte significativa daquilo que só ele julga ter amealhado à custa de muito e honesto trabalho. Vida ingrata, a obrigação de estar ao serviço dos outros. Se lhe sobrar tempo, depois de estar ao seu próprio serviço, vinte e quatro horas por dia, sem descanso semanal.

Amanhã é sábado de aleluia, acaba a quaresma. O tempo vai continuar igual: chuvoso, nevoento e triste, de vento soprando nas esquinas e virando contentores de lixo. Não é tempo de meteorologistas, e também já não é tempo de compasso nas ruas da cidade!

28 de março de 2013

Casos de polícia


Não vi nem ouvi José Sócrates, licenciado em engenharia a um domingo e recentemente diplomado em filosofia na Place Pigalle. Como não vejo nem ouço Coelho, Portas, Relvas, Gaspar, Álvaro, Silva e outros. Como não vejo nem ouço os diálogos eruditos e escabrosos da casa dos segredos. Prefiro e opto sempre por fitas muito mais “softcore” como o clássico Garganta Funda, por exemplo. De forma que, felizmente, me não posso pronunciar sobre o que não vi e não ouvi. E que nem quero ver nem ouvir.



Apenas retenho, de relance, uma imagem do senhor Silva, equipado a rigor, arrumando sardinhas numa lata de conserva. Num biscate que algum providencial amigo lhe terá arranjado para complementar a pensão de reforma e ajudar às despesas, quando acabar o contrato a prazo nos pasteis de Belém e deixar de se pronunciar sobre a filosofia de Kant, com a autoridade de um doutorado por York, à porta das fábricas de conservas de peixe.

Depois, se virem bem, em qualquer país civilizado, incluindo a República Centro Africana, tudo isto seriam simples casos de polícia... Quanto a Sócrates, só há o saudoso que vai na imagem, um verdadeiro doutor... porque o outro já é antigo demais.

O que se passou em Chipre


Eu gostaria de dizer isto em poucas e simples palavras. Porque só temos opiniões próprias sobre as coisas que entendemos. E, a pretexto da especialização e da complexidade dos temas, o poder político visa exatamente o contrário: complicá-las para que as não entendamos. Se não compreendermos o jargão que utilizam não teremos bases para opinião própria e é quase certo que não reagiremos sobre o que não entendemos.

Os bancos eram tradicionalmente instituições que recebiam depósitos e faziam empréstimos. Dos empréstimos feitos resultavam juros que permitiam pagar juros mais baicos aos depósitos e ficar com uma parte que representava a remuneração e o lucro do banco. Esta lógica é simples e fácil de entender. Mas, ao longo do tempo, a invenção, a ganância do lucro, a falta de escrúpulos e modelos de gestão perfeitamente criminosos subverteram tudo isto. Com a inestimável contribuição do Estado, o mais impune ladrão de todos.


Foi esta prática que levou ao conhecido caso BPN e, depois, ao caso BPP, que o governo deixou cair, embora permitindo que o seu dirigente máximo se continue a afirmar de mãos imaculadas, gestor exemplar e a viver num casebre da Quinta da Marinha, com vista para o mar. E, no caso do BPN, o Estado entrou bom biliões de euros – dos nossos impostos! -  para depois o vender, naquilo a que chamou um bom negócio, por simples 40 milhões, ao rei da cortiça e a um seu sócio angolano, do mercado do Roque Santeiro.

Não cabe na cabecinha arrumada de nenhum de nós fazer hoje um depósito na nossa conta no banco X (o nome é indiferente, andaram todos na mesma escola, até quem dirige a pública Caixa Geral de Depósitos) no valor de 1.000 euros e o mesmo banco, amanhã, nos dizer que só nos dá 800, roubando-nos os outros 200. Sendo roubo um termo muito forte, que nem a ladrões agrada, a terminologia oficial fala em “taxa”. E não há um só profissional da dita comunicação social que diretamente refira o roubo, até porque se sabe quem são os donos das televisões, das rádios e dos jornais que lhes pagam.

Portanto o que aconteceu em Chipre foi literalmente isto, excluindo à última hora os depósitos até 100.000 euros – cerca de 20.000 contos em escudos ou mais de 15 anos de salários mínimos -, independentemente da forma como o dinheiro tivesse sido ganho, legal ou ilegalmente. E recorde-se que neste Portugalzinho pequenino, a cair do Cabo da Roca abaixo, o poder instituído já recusou que o chamado enriquecimento ilícito fosse criminalizado. Ou, por outras palavras, em Portugal é perfeitamente legal enriquecer ilegalmente. Se assim não fosse os distintos Oliveira e Costa, Dias Loureiro, Duarte Lima e outros não teriam onde cair mortos... Tudo gente honesta, no âmbito da ilegalidade permitida pela legalidade que eles próprios ajudaram a definir. Tudo ladrões condecorados e celebrados pelo regime!

26 de março de 2013

Há de ser primavera


O dia mal clareou e a segunda feira abriu-se para a manhã de inverno, já em calendário de primavera. O sol arredio por sobre as nuvens escuras. Só chuva, de sol nem promessas, só o vento desabrido a açoitar as esquinas e a varrer as ruas desertas de gente. Mais um dia nesta caminhada solitária contra a vida. Vai um mar revolto e feio, galgando as rochas e espantando as gaivotas para a segurança de um abrigo em terra. Onde a chuva e o vento se vestem de nevoeiro, quando a primavera deveria explodir nos ramos altos dos plátanos.

Durante dois dias de frio polar, corrido a vento, um sol de primavera implodiu os dias de inverno a que não tem faltado a energia e encheu-nos as manhãs de um céu azul sem nuvens. Fiz-me à manhã cedo, como se acordasse entre trópicos, o sol sempre acima do horizonte, o voo dos pássaros sempre sem a tormenta dos dias cinzentos e o horizonte à dimensão fugaz dos dias curtos. Como se não houvesse o nevoeiro denso a esconder-me a luz do caminho e os degraus da porta de entrada, e o ar sereno e quente fosse um poema de amor, sem a revolta da libertação e nenhuma canção desesperada.



Porque fui deixar-te sozinha, entregue ao sono tranquilo da manhã que se aproxima, o corpo relaxado e o sonho a despertar-te, à flor da pele, como se não tivesse havido noite?  A noite foi um espaço sem tempo, uma carícia, um abraço em que nos encontramos para o sono e para o sonho, tudo tão simples como os dias que o mar nos oferece, espalhando-se pelas praias de areia fina, sem ondas, só uma espuma branca que nos afaga, as casuarinas ondulando as folhas finas mesmo onde morre a ânsia das marés. E tu ali sozinha, na minha ausência, o sono a encobrir-te a partida breve, sem distúrbio e sem distância, como se tudo fosse tão perto e eminente.

Mas melhor do que o sol brilhante da manhã fria, se o houvesse, seria a respiração serena com que me embalavas. Tantas promessas de sol quente no brilho das manhãs frias que me levavam envolto em chuva e nevoeiro. Quando eu já esperava pelo vermelho das papoilas nas bermas verdejantes das estradas.

25 de março de 2013

Tratado de Roma – Assinado há 56 anos


O chamado Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) foi assinado em Roma faz hoje 56 anos e subscrito por Alemanha Federal, França, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Mantenha-se todavia presente que um tratado anterior tinha já sido assinado em Paris, em 1951, instituindo a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). O propósito de todos eles era a união política e, tendo ainda fresco o fracasso rotundo da Sociedade das Nações, optou se por três, de tal forma que se um deles falisse ainda ficavam mais dois. Como no totobola, para acertar no resultado, jogou-se uma tripla.

Os três tratados têm dois inspiradores, Robert Schuman e Jean Monet, cujas boas intenções creio serão de aceitar, depois de uma guerra recente, que deixou milhões de vítimas, uma destruição global e a miséria generalizada. Após Roma tem sido a evolução que se conhece, ainda ontem claramente exposta na questão cipriota – pequena ilha a contas já com os problemas com a Turquia – com o roubo ou confisco puro e simples de parte significativa dos depósitos bancários a que os linguistas de gabinete acharam por bem chamar “taxa”.

Depois quase ao virar do século XX a Alemanha que tinha tentado dominar a Europa por duas vezes, utilizando a força, sem obter sucesso, consegue-o com a reunificação, o desmembramento do bloco socialista e a força do dinheiro a que nenhum político que se preze resiste, obviamente por elevadas razões patrióticas. E a União Europeia hoje é uma manta de 27 retalhos, tecida ao gosto da dona do tear que impõe as regras, empresta o dinheiro e fixa as taxas de juro que entende.

Não vi que à data do aniversário tivesse sido dada relevância especial, sendo certo que nenhuma felicidade etérea ou eterna – do felizes para sempre! -  há para celebrar. Cada caso é um novo passo em frente, até à implosão. Do euro primeiro, da própria União depois. Só se não sabe nem quando nem como. E, muito pior do que isso, ninguém arriscará adivinhar as consequências... Mas, por mais europeístas que haja, a Europa nunca existiu!

24 de março de 2013

Sou um homem triste


Sou um homem triste, sempre fui um homem triste, serei sempre um homem triste. Não vale a pena escondê-lo, tentar sequer dissimulá lo, sufocar-me com a amargura com que a vida me veste cada minuto que passa. Em pequeno acolhia-me ao conforto humilde do teu regaço, a cada rara e pequena birra que os minutos sublimavam, vinha-me ao rosto um sorriso curto, um pequenino brilho nos olhos e eu sentia-me feliz no calor sereno e simples que a tua mão deixava sobre os meus cabelos. Perdi te, e ainda se me turvam os olhos quando o escrevo, porque o não aceito e nem sequer me conformo. Ninguém pode deixar perder o único afeto que tem e não o chorar, sabendo que doravante cada minuto serão horas, a vaguear pelo deserto, sem rumo e sem destino. Mesmo quando a tua presença era já coisa nenhuma, o corpo mirrado pelos anos, a voz calada pelo desgosto de quem parte, os teus destroços depositados no desconforto de uma cadeira de rodas, já só tempo de espera.


E sendo triste, muito triste, parece que sorrio quando te vejo a ti, outra idade, outra vida, um sonho de infância, e nos cruzamos por aí. E que solto o riso aberto quando me habitas o longo silêncio das noites de inverno, com a neve a misturar-se com a espuma das ondas morrendo na areia fina das praias desertas. Despertar e ver o pano descer, sem aplausos, sem pedidos para que volte ao palco, como se a vida fosse uma balada lenta e triste. E a vida, a minha vida, é uma balada lenta e triste. Sem melodia, sem ritmo, sem música nenhuma, sem os dedos ágeis e mágicos de Bebo Valdés afagando o teclado de um piano também mágico. É uma balada porque do fundo deste pessimismo em que me afogo há sempre uma esperança que emerge, que trás à superfície uma derradeira restea de sonho, uma crença inexplicável que não alimento de joelhos nas naves das igrejas, alguma coisa em que acredito e que, de facto, não vale a pena.

Ser assim triste pode não ser um drama, mas é uma fatalidade. Sou amigo de toda a gente, acredito em toda a gente, dá-me prazer poder ser útil a toda a gente, como se fosse gente. Isso não me faz alegre, mas chega a dar me a sensação de me fazer sentir feliz. De resto, não me dou comigo, não sou meu amigo, não aprovo aquilo que faço. Tudo o que fiz na vida, se fiz alguma coisa, fiz mal ou poderia ter feito melhor, e a responsabilidade é apenas e só minha. Talvez a tristeza venha também um pouco daí, nunca empurrei culpas, nunca apontei o dedo a ninguém, sempre aceitei o meu lugar nesta fila para a vida, como se fosse comprar pão, sem passar à frente fosse de quem fosse. E quando chegou a minha vez o pão tinha acabado!

Mas a tristeza embota me os sentidos, tolhe-me o pensamento, distorce me o raciocínio. Sou triste e sou ingénuo. Com uma queda admirável para o equívoco. Engano-me a propósito de tudo e de nada, qualquer um me engana, me submete, me trai, me explora. Dei de mim o que tinha e o que não tinha, menos a tristeza e a solidão dolorosa em que ela nos mergulha. Vejo bem, o que é um privilégio, mas num mundo sem cor. Fui um fumador triste, deixei de fumar e continuei a sê-lo e isso não despoluiu nenhuma consciência. Tenho sido saudável, sem problemas de saúde, e isso tem sido outro privilégio que me não roubou a tristeza e me não valeu de nada. Já não tenho tempo, nem esperança, nem persistência para trocar esta tristeza por um simples raio de sol. Não sou aquele por quem se espera. Sou cada vez mais, e apenas, aquele que também já só espera!

O roubo ainda salva o euro


Aparentemente o assalto e o roubo decretado sobre os depósitos bancários de Chipe ainda salvam, por uma vez, a impropriamente chamada moeda única e a ditadura económica e financeira da União Europeia. Ao roubo literal, para melhor enganar a iliteracia que grassa do Cabo da Roca aos Montes Urais, decidiu chamar-se taxa. Numa situação perfeitamente idêntica à dos pilha-galinhas, quando os havia, que não roubavam a capoeira. Com o conselho especializado dos assessores e do António Borges, simplesmente taxavam-na!

A lista vai-se alongando: Irlanda, Grécia, Portugal, Itália, Espanha, Chipre. Fora aqueles que já viajam enjoados, sem estarem grávidos e sem suportarem a amplitude das vagas, e que farão a lista ir-se alongando mais, até à derrocada. O euro tem os dias contados, a União Europeia também. Pena é que tenham que ser as gerações futuras, espoliadas de tudo, a ter de regatar a esperança e o futuro. Com sangue, suor e lágrimas!

22 de março de 2013

Prémio Nobel da Economia


Há muitos anos atrás, Edward Heath, um primeiro-ministro inglês já morto e enterrado, foi figura central de uma anedota que varreu o país, ex-aequo com a D. Amália Rodrigues que, por feitos patrióticos que superaram os da D. Brites de Almeida, repousa no remanso tumultuoso de Santa Engrácia, com vistas privilegiadas para o Tejo e para os submarinos do Dr. Portas.

E o que no essencial a anedota dizia era que tinha sido atribuído a ambos o prémio Nobel da Química. Dispenso-me de referir os feitos da D. Amália para que tivesse sido galardoada, nem o impagável Dr Relvas, o seu patrão e o tutor de ambos iriam perceber o contributo que a senhora tinha dado à ciência. É diferente o caso do Sr. Heath de quem se dizia que o prémio lhe era atribuído por ter conseguido transformar a libra esterlina em merda. Literalmente e sem mais!


Claro que os tempos mudaram e há mesmo quem diga por aí que evoluíram. E Portugal enxameia de candidatos ao Nobel, seja ele qual for. Por ironia do destino, e talvez não, um dos mais fortes candidatos ao prémio Nobel da Economia é um engenheiro químico de formação, jovem agricultor, perseguindo o título de rei do kiwi do concelho do Marco de Canavezes. Um género de Entroncamento, muito dado à paternidade de fenómenos, como Carmen Miranda – que o Brasil adoptou – e Avelino Ferreira Torres que ninguém quis, depois de quase ter destruído a pontapé o estádio da terra, a pretexto de lhe assistir o direito de partir tudo porque também tinha sido ele a pagar tudo. Um exemplar conceito de benemerência que o há-de levar à beatificação e ao altar.

Agora o nosso plantador de kiwis, cuja notoriedade decorre do facto de manter constante o preço do arroz carolino na sua rede de mercearias, introduz a química orgânica – lá vai isto dar merda de novo! – na economia e diz publicamente, a plenos pulmões, que não vê porque não há de haver ordenados baixos. Porque, segundo a sua química, se assim não for, não haverá emprego para ninguém. E que, para melhorar a competitividade, se deve pensar mesmo em não haver ordenados nenhuns, salvo para as luminárias que vão à roda do leme. O resto é apenas força de braços para os remos, no porão das naus que hão de descobrir novamente o Brasil. E novamente no caminho para a Índia, como da outra vez.

Como diz outra graçola qualquer, a este, para ser um respeitável burro mirandês, só lhe faltam mesmo as penas. Até as quatro patas já tem!

21 de março de 2013

Dia mundial da poesia


A poesia não se escreve, não se diz, não se soletra. A poesia acontece. E não acontece hoje porque a Unesco assim o decidiu em novembro de 1999. A poesia está connosco antes de sermos feto, apenas óvulo ou espermatozóide  iniciando-se nos carreiros da vida, acontecendo antes de acontecer. Acompanha-nos quando nascemos, no conforto caro de uma casa de saúde, na vulgaridade de uma maternidade, na imensidão de uma savana de África. Onde a poesia acontece com todos os animais no seu habitat, convivendo sob a extensão sem limites que o sol estende como tapete comum, à beira dos rios, no silêncio dos lagos, na areia escaldante dos desertos.


Não se é poeta porque se quer, porque se conseguiu um editor, porque dois leitores que nos não percebem nos são caninamente fiéis. Porque vida de poeta é vida de cão, de meter o rabo entre as pernas e ir por aí, recusando o caminho para o aceitar logo de seguida. Poesia é métrica, é rima, é verso, estrofe, uma série de conceitos com que os poetas se não preocupam e com que convivem sem se darem conta. Poeta não tem nome, mesmo que se chame Camões, Pessoa, Andrade, Ferreira, Aleixo, Campos, Natália, Bandeira, Alegre, Régio, Sofia. A poesia jorra, como o vinho que se bebe, a aguardente que arde na garganta,  o Guardador de Rebanhos que se espalha pelas folhas de papel que se soltam da memória e se arrumam no vazio das gavetas.

Poesia não é sentimento, nem calendário, nem dia certo, nem noite de lua cheia com namorados ao luar sem verem a poesia do eclipse e a sonharem com a poesia da lua nova. Poesia não é livro, jornal, internet ou rede social. Não é Villaret, Viegas, ramo de oliveira, revolta, religião ou prece. Oração ou santuário, sacristão, padre, bispo ou papa. Freguesia, concelho, país amordaçado, cântico heroico, percurso épico. Não é para comer, beber, petiscar, palitar os dentes, piscar o olho. E come-se e bebe-se e petisca-se e sente-se. E entranha-se como um tumor com que se morre e com que se vive, que se extrai e que se renova. Não é de hoje, nem de ontem, nem de amanhã. Nem deste século, nem do outro, nem de sempre. Mas de sempre e de todos os dias.

20 de março de 2013

Cais deserto


Numa estação de caminhos de ferro há um cais deserto que se prolonga muito para lá de onde o olhar alcança. Um cais deserto é sempre a ansiedade de quem espera, as lágrimas de quem fica, a solidão da distância a que mora a ausência de quem parte. Geometricamente as linhas a perderem-se para além da curva do horizonte, marcando encontro com o infinito, para além do sonho e da esperança., onde fica o paraíso e onde todos os encontros, finalmente, são felizes e eternos.


Um cais destes, deserto de pessoas e de comboios, sem o ruído metálico das rodas travando nos carris, e sem os passageiros apressando-se com as bagagens, é um fascínio doloroso que não cabe em nenhuma fotografia, por mais extenso que possa ser o papel e abrangente a objetiva. Os dias soalheiros, mesmo de inverno, podem trazer a esperança à ansiedade de quem está e de quem espera pelo comboio que chega e pela pessoa que desembarca com o passo seguro de quem trás destino certo.

Quem se apeia pode trazer no olhar o brilho luminoso dos dias claros, a primavera florescendo nos cabelos com uma manhã de sol, os dedos das mãos prontos para a ternura, o passo firme e curto ajustado aos grandes percursos que, sem pressa, se fazem pela vida fora. A sua presença, de repente, enche o cais de lés a lés, de azáfama e movimento, embarques e desembarques, uma só pessoa submergiu a solidão, empurrou a desesperança para além de onde os comboios nos fogem do horizonte. Para lá da porta da estação fica um outro mundo onde, a dois, se constroi a certeza do futuro, se dão as mãos e se partilham sonhos e desejos. Enquanto pelos dias longos de verão se trocam prendas e se fundem corpos, como se a solidão do cais já não sobrasse para nenhuma despedida. E menos ainda para qualquer separação.

19 de março de 2013

Sinal vermelho


Até há dois ou três dias atrás não se sabia e nem se suspeitava sequer que relação poderia haver entre um semáforo vermelho, um rapaz de motorizada e um polícia armado. E afinal há, e estreita. Tanto, que é por demais quimicamente explosiva, se as três coisas se vierem a localizar simultaneamente num raio de alguns 50 metros ou pouco mais.

Primeiro um rapaz de motorizada, mesmo velha, resiste mais facilmente a uma garina virgem de 15 anos do que a um semáforo vermelho. É ver-lhe a cor e atira-se-lhe para cima, salvo seja, e não se façam comparações com a garina. E um polícia armado tem por um rapaz de motorizada que se atira a um semáforo vermelho a mesma fatal atração daquele pelo semáforo. E tanto assim que saca do canhangulo que trás à cintura e desata a disparar para o ar como se o Benfica tivesse acabado de ganhar o campeonato. Para festejar? Não, muito apenas para avisar o rapaz que lá porque o semáforo tem a cor do clube, os semáforos vermelhos devem deixar-se tranquilamente em paz, sem os assediar, como se faz às garinas de 15 anos e minisaia.


Pior é quando o canhangulo, herdado da guerra de 1914-18, ainda funciona e dispara mesmo. Embora um tiro para o ar possa desviar a trajetória – parece que a balística explica isso! – e ir direitinho se não ao corpo do rapaz, pelo menos à lataria da chocolateira. E este, com a atrapalhação da minisaia da garina, do rubro do semáforo e do estampido do tiro, se despista e dá com os cornos num bloco ou num passeio de cimento. E acaba por deixar os miolos espalhados pela via pública e vai desta para melhor.

Explicação mais surrealista do que disparar para o ar, para avisar um rapaz de motorizada que não se passa com o sinal vermelho, só poderia vir do saudoso Mário Cesariny. Mas este mudou-se, onde ele está os telemóveis não têm rede e não há sacana de tiro de aviso que lhe chegue. A menos que ainda tenha sobrado uma munição ao senhor polícia e este esteja na disposição de a disparar para os pés. A ver se a balística a leva para o céu e o senhor Cesariny  ouve o disparo e dá à explicação uma forma que possa ser digna de um surrealista a sério, como ele ou o senhor António Maria Lisboa! Apenas porque é preciso avisar toda a gente!


18 de março de 2013

A derrocada


Embora retardado pelo esforço dos seus principais responsáveis, o euro caminha com passos seguros e irreversíveis para a confirmação de que a sua criação não passou de um artifício que possibilitou a subida generalizada dos preços e a realização de lucros obscenos por parte dos que já eram obscenamente ricos.

A derrocada da União Europeia virá de seguida porque de facto esta não existe e nunca existiu, por mais que o eterno Dr. Soares continue a assegurar o contrário. Ninguém acredita que uma manta composta por 27 retalhos, desde a serapilheira ao veludo, possa dar uma colcha de renda feita à mão, que cubra todos de igual forma.


Aquilo a que chamam Europa, e que não é mais do que um continente velho e decrépito, não é apenas dirigida por burocratas e amanuenses que, bem remunerados mas a título precário, a senhora Merkel mantém nos seus escritórios de Bruxelas. Nem tão pouco é dirigida por incompetentes ou desonestos. Pior do que isso é dirigida por criminosos a que só falta o tratamento que a Islândia, que não pertence à União Europeia e que não quererá pertencer, reservou aos seus banqueiros e aos seus governantes: o julgamento e a condenação em juízo.

O inacreditável vem de Chipre, com a desculpa de que é um pequeno país, remetido apenas a metade de uma pequena ilha, por insanáveis problemas políticos. Quando, genericamente, se propaga que todos os estados membros são credores dos mesmos direitos, o que mais que utopia é simples embuste. Chipre, falido com está a maioria dos países membros da União Europeia, não decidiu nada sozinho, sem o beneplácito da patroa de Berlim. E acaba de decretar, pura e simplesmente, o roubo direto e imediato de uma percentagem dos depósitos à guarda dos seus bancos. E que, como em Portugal e noutros países, a ganância dos seus banqueiros levou à falência. Evitada, como se sabe, à custa de dinheiro emprestado a taxas especulativas e comprometendo, definitivamente, o futuro dos nossos filhos e das gerações seguintes.


13 de março de 2013

A volta a Portugal


Parece que António José Seguro, um rapaz que já fez 50 anos embore continue a exibir uma mentalidade de 10, iniciou ontem, em Braga, aquilo a que ele próprio chamou uma volta a Portugal. Sem todavia especificar se era a pé, em bicicleta ou em automóvel. E sem dizer se a mesma tinha a benção do senhor arcebispo da cidade, de momento muito ocupado a seguir na televisão, em direto e a cores, a eleição de mais um sucessor de Pedro, a usar sapatos vermelhos em vez de sandálias.

Seguro julga-se um predestinado enviado por qualquer personagem de um filme de Spielberg e por António Guterres, para nos salvar da mediocridade, da ignorância e da miséria a que uma obtusa classe política, à imagem da que reina na Madeira, nos tem patriótica e peregrinamente conduzido. De facto ninguém mais indicado e mais qualificado do que ele, para nos representar, de preferência e por vocação sozinho, com os elementos da sua quadrilha à volta. Sem que nos assaltem veleidades de invocar qualquer tipo de participação, que não seja fazer uma cruz num bocado de papel que tivemos de pagar bem caro e antecipadamente. Quando o inquilino de Belém decidir interromper os seus árduos trabalhos de resolução da crise, para uma bucha e a convocação de eleições.

Para uma partida de sueca ao ar livre, sem parceiros suficientes, com as regras viciadas e as cartas marcadas, parece que Seguro atirou ao ar, como se fosse um foguete sem cana, a ideia patriótica e peregrina de uma união de esquerda, seja lá isso aquilo que for, para as eleições autárquicas. Porque mesmo reclamando-se de esquerda, se ele, se Sócrates e se Guterres – com compreensão pelos momentos solenes em que assiste à missa e toma a comunhão – são esquerda eu, que não sou capaz de pegar um saco de compras com a mão esquerda ou dar um pontapé numa lata abandonada no passeio, sou canhoto de pés e mãos e, seguramente, do resto do corpo.

Ao que parece propunha desde logo o apoio para os candidatos que já tem selecionados, entre correlegionários, amigos e afilhados. Deixando para as calendas a complicada questão da Câmara ou de Câmara que tanto tem preocupado Belém, mantendo as luzes acesas até alta madrugada e feito disparar a factura da EDP, para benefício do senhor Mexia e do seu patrão chinês. Quando a questão começa aí: Menezes não pode ser candidato em mais nenhum lado e aquele dirigente do Benfica que mora em Sintra também não. Como não pode nenhum outro, em nenhum lado. E vamos lá clarificar as coisas: seja membro de ou da Junta de Freguesia, de ou da Câmara municipal. Porque pura e simplesmente não há eleições nem para presidentes de ou da junta nem para presidente de ou da Câmara!

12 de março de 2013

Madrugada


Se pela madrugada a tua mão me escorrer lentamente pela face, devo ter o sono leve e o espírito desperto. A noite é dada a todos os equívocos, até todos os gatos são pardos, uma cor baça que não consta dos compêndios. Depois, pela madrugada, com o sono solto, todos os gestos têm a dimensão do sonho e a distância inalcançável a que ainda fica o verão. E eu não quero sentir a tua mão fria pousar-me na fronte febril, a prometer-me destinos que ficam para lá deste minúsculo sistema solar onde não cabe mais do que um inverno.


O sono é este poço sem fundo em que mergulho, sem químicos que anoiteçam os dias, apenas cedendo a um cansaço antigo a que me entrego sem resistência e sem propósito. E do qual acabo por emergir todas as manhãs, à força das horas que caiem dos relógios e me forçam a que abra os olhos e lhes remova a ramela com que a noite me trouxe o sono e me sacrificou a esperança. A rotina é sempre esta, com os dias a caírem pelo tempo e a falta de uma mão carinhosa que chegue com o sol que entra pela janela, macia e morna, a afagar-me os cabelos e a acariciar-me os lábios cerrados. A madrugada há de ficar para lá deste sol que anuncia o verão. Quando esse sol nascer.

11 de março de 2013

Manuel da Fonseca morreu há 20 anos


Não conheci pessoalmente Manuel da Fonseca, e tenho muita pena. Soube dele através de um muito conhecido conto seu, “O fogo e as cinzas” e por intermédio de um homem muito culto e muito bom, chamado Rosado Ferreira. Que sei ser natural de Lisboa e de quem nunca mais soube nada, desde o início da década  de setenta do século passado. Não sei sequer se é vivo, o que eu estimaria muito.


Manuel da Fonseca deixou-me definitivamente gravadas no cérebro algumas frases curtas e densas, que nunca nada apagará. Revejo-me hoje na minha primeira visita a Santiago do Cacém, onde nasceu e viveu grande parte da sua vida. Uma primeira olhadela pelo largo em frente à Câmara e a associar as coisas: aquele era o largo que antigamente fora o centro do mundo. Pessoa amiga me diria mais tarde que não, que o largo não era aquele. Mas poderia ter sido...

Gostei de ver como há dois anos Vila Franca de Xira celebrou o centenário de Alves Redol e lhe associou Manuel da Fonseca, figura incontornável do neorrealismo. As terras mais pequenas respeitam as suas personalidades, as grandes ignoram-nas e esquecem-nas. Como gosto, ainda hoje, de voltar a Santiago do Cacém, subir à colina onde é o cemitério e ir direito ao canto onde uma lage cobre Manuel da Fonseca e quedar-me ali perfilado, num silêncio respeitoso, repetindo sozinho que “Valgato é terra ruim”. A frase com que ele abre “Campaniça”, um conto integrado no livro Aldeia Nova. O fascínio é meu, mas esta pequenina amostra de prosa é das coisas mais belas que me foi dado ler em língua portuguesa. Não resisto a deixá-la aqui e a esperar que toda a obra do autor seja reeditada rapidamente.

Valgato é terra ruim.

Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim, que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.

Valgato é uma terra triste.

Saem os homens para o trabalho ainda a manhã vem do outro lado do mundo. Levam enxadas e foices e conhecem todos os trilhos, entre o mato, com estevas que são mais altas que duas vezes o tamanho do mais alto dos homens de Valgato. Tanto conhecem os caminhos que vão, sem desvio nem engano, até às herdades que ficam a léguas de distância, ainda com o sono e o escuro da noite fechando -lhes os olhos.

Não é de admirar. Zé Tarrinha tem uma mula que caiu num barranco de piteiras e vazou os dois olhos. Pois a mula nunca erra a casa e vai sozinha à fonte. Não é de admirar que os homens saiam ainda com o escuro da noite, e com o sono, e vão sem desvio ou engano até às herdades.

O Venta Larga, quando se fala que alguém se perdeu no caminho, diz sempre:

– A gente não precisa senão de saber onde põe os pés. O mais é cá disto… – funga com ruído e, alargando as narinas, aponta o nariz – … o mais é cá do cheiro.

Por isso lhe chamam o Venta Larga.

9 de março de 2013

Pedro Álvares Cabral partiu para a Índia há 513 anos


A 9 de março de 1500, comandando uma frota composta por 13 navios, e depois de uma viagem rigorosa e pormenorizadamente planeada, Cabral largou de Lisboa para a Índia, seguindo a rota recentemente aberta por Vasco da Gama, com o objetivo de estabelecer e consolidar relações comerciais e regressar com uma carga de especiarias.


Como se sabe, quem reduziu os planos a escrito ou os digitalizou para o Magalhães, esqueceu-se de que a bordo só viajavam facínoras e analfabetos, incapazes de interpretar tão desenhada caligrafia e tão retocados mapas… E o resultado foi o que se viu: A frota rumou a ocidente, procurou com denodo o cabo da Boa Esperança e, quanto maior era a desesperança, mais rumava a ocidente e mais procurava o cabo. E tanto procurou que foi o cabo dos trabalhos até que o gajeiro divisasse terra e se pensasse ser a Madeira com o pico do Arieiro a furar as nuvens, ainda o regedor de lá andava à solta nas Selvagens, apenas de tanga a tapar-lhe as partes, facto do qual, aliás, as ilhotas ganharam a grandiosidade do nome e ele a fama e a erudição da linguagem.

Nós temos no governo dos nossos dias uma réplica rigorosa da frota de Cabral, sem navegadores, sem barcos e sem crédito, mas com uma vontade louca de ir aos mercados e às meninas, a adquirir tomates e pepinos, dispondo de dois submarinos que custaram os olhos da cara -  para cujo pagamento pedimos dinheiro emprestado - incluindo comissões, favores, prendas, viagens e enriquecimentos ilícitos e que estão aptos, depois de terem subido o rio Trancão, submersos, até à nascente e se prepararem para subir o rio Nabão até ao Agroal. Temos até, para comandar a frota, um outro Cabral, sem ser Pedro e nem sequer Álvares.

O governo exercita-se para que nada falhe e tudo corra tão de acordo com os planos, como correu a expedição de 1500 e vem correndo a redução da dívida pública. Tanto assim que, à medida que o desemprego cresce, o governo combate-o liberalizando os despedimentos. E como se isso não bastasse, o próprio primeiro-ministro prometeu diminuir o salário mínimo, promover a fome, como forma  de nos garantir a felicidade, a eira cheia e a salgadeira atafulhada de presuntos. Quando só houver desempregados, será a abastança e a expansão colonialista do século. Nem a Coreia do Norte ou as Seychelles escapam! E os submarinos levarão a bordo uma carga de pastéis de belém, se o condómino das traseiras não absorver a produção toda, como vem acontecendo com o bolo-rei. A canela poderá ser adquirida no destino, a preços de “outlet” – não sei o que significa a palavra, mas fica bem! - esperando ser possível moê-la com recurso ao “outsourcing” – esta ainda sei menos, mas que se lixe, deve ser francês do Dr. Soares! – a preços competitivos.

A pátria tem o futuro garantido, o Dr Vasco Pulido Valente tem assunto para as suas crónicas durante uns tempos e o governo em peso está às portas da imortalidade, só lhe faltando mesmo estar morto!

8 de março de 2013

No dia internacional da Mulher


Penso-te o nome e enche-se-me o cérebro, sobram-me as ideias, desfaço-me em ternura, transforma-se-me a vida num conjunto aberto de convicções. Penso Mulher e desde logo Mãe, a primeira, a maior, a mais nobre das funções de que te vestes. E, como se isso fosse preciso, chega-me a memória e a saudade da minha, os olhos que se me toldam, rasos de água, o corpo franzino, a energia desmesurada, o trajecto longo, a vida tão ingratamente cheia de espinhos sem o perfume das rosas. E todas Mães, nobres, compreensivas, complacentes, protectoras. Com todas as maldades que todos sempre lhes fizemos, inconscientes e ignorantes, os cabelos desalinhados, as saias puxadas, o caldo entornado, a irritação a que cedes por momentos. Depois da pequena tempestade sempre a bonança infinita.


Penso Mulher e desde logo Companheira. Com cerimónia ou sem ela, os relacionamentos não são fruto de papéis, escrituras, rezas e tabeliões. São mais fruto da amizade e da compreensão cúmplice que nos mora na profundidade do olhar, verde ou castanho, azul marinho até para lá do farol que assinala o início de tudo o que partimos a descobrir, com a verdade por destino. Os ombros que se alinham, as mãos que se dão, os passos que se caminham pela vida, dar e receber, entrega e partilha, qual de nós sou eu, até onde me sou, se transbordas para lá do meu horizonte. Somos um, qualidades e defeitos, sonhos e aspirações, cabeça e ombro que se alternam, duas lágrimas e um sorriso. Uma vida cheia de esperança e de futuro.

Penso Mulher e desde logo Amante. O infinito que começa nos olhares que se cruzam, as palavras que se calam, os gestos que se dispensam, os corpos de que prescindimos para sermos apenas um, diferente e igual, só beijos e ternura, a entrega que é tão toda como se não fosse nenhuma, tão apertado abraço, apenas o arco-íris nas fronteiras do paraíso, o céu é como o amor que nos une, não tem limites, não principia nem acaba. Vinte poemas de amor e uma canção! Uma casa debruçada sobre o oceano, as ondas a morrerem-nos nos pés descalços. A silhueta de Neruda espalhada pelos Andes abaixo, até nós.

Penso Mulher. Hoje, um dia se o ano tem muitos, todos teus de pleno direito, sem simbolismos e diferenças que te diminuam. Mas trago-te um ramo de rosas vermelhas, o veludo do amor que me amacia e me aquece o peito. Este todo que te entrego, de alma e coração, hoje e todos os dias para além dele. Sejas Mãe, sejas Companheira, sejas Amante!

6 de março de 2013

Futebol e dívida soberana


Por menos que isso possa parecer, o futebol e a dívida soberana são duas atividades com muito de comum entre si. Ambas são apenas entendidas por especialistas – numa sociedade que já não dispõe de generalistas que saibam a tabuada dos três e qual é a capital da Hungria – e cuja conceção teórica está cometida a verdadeiros cientistas.

Primeiro julgava-se que o futebol era apenas um jogo de onze contra onze, conduzido por um trio de arbitragem de três elementos – e agora um trio de quatro! – cujo chefe carregava o apito pendurado ao pescoço e a responsabilidade de o fazer ouvir quando houvesse infração das regras. Hoje o futebol é uma indústria onde se não produzem sardinhas de conserva ou rolhas de cortiça, mas onde se ampliam calotes, mesmo quando se pensa que isso já é impossível. É uma indústria falida, como a do país em geral, onde se não produz coisa nenhum e se traficam seres humanos a preços exorbitantes e por períodos curtos, sob contrato.


Do que antecede resulta que às eleições para os corpos dirigentes se apresentam tantos mais salvadores da instituição quanto maiores forem os calotes que esta tenha contraído e maior for o atraso no pagamento dos ordenados dos operários do pontapé nas canelas. Organizam-se competições para que não há dinheiro, constroem-se estádios novos que não servem para nada, prometem-se conquistas que levam o país de novo a Ceuta e à epopeia dos descobrimentos. É ver a situação atual do Sporting, carregado de dívidas, sem plantel, esforçando-se por fugir aos últimos lugares da tabela classificativa, invocando os seus antepassados, a sua grandeza esquecida e a genealogia do visconde de Alvalade. Um dos candidatos adianta que o problema nunca foi de dinheiro – pois não, foi da crónica falta dele! – e outro diz que é eleito hoje e amanhã entrega na tesouraria do clube, sem juros e sem reembolso, absolutamente oferecidas, algumas dezenas de milhões de euros. Sem se saber onde os tem, como os ganhou ou onde os vai buscar.

A dívida soberana representa o resto de soberania que é património da país, apenas porque ninguém a quer. Não há muitos anos chamava-se-lhe dívida pública e era representada por títulos a que se chamava obrigações. Hoje a dívida soberana cria uma vontade incontrolável e dependente de ir aos mercados. Para fazer compras para a semana? Nada disso, apenas para vender dívida. E vender dívida é a salvação do país como o senhor Carvalho será a salvação do Sporting e da juventude leonina. Vamos aos mercados e vendemos os calotes, em vez de os pagarmos, arrecadamos bom dinheiro por eles. Claro que isto não é compreensível para qualquer um, se assim fosse o senhor Gaspar teria sido capaz de administrar as finanças caseiras com a competência que o terá feito a doméstica senhora sua mãe.

Não se pede dinheiro emprestado, obtém-se ajuda dos nossos amigos agiotas às taxas de juro que eles entenderem. Presta-se-lhes contas com a periodicidade que impuserem, alojam-se-lhe os funcionários em hóteis de cinco estrelas, põem-se-lhe à disposição automóveis topo de gama com motoristas impecavelmente fardados, usando gravata preta e camisa branca, como se fossem para um funeral. E o regresso aos mercados não representa a intenção de pagar os calotes, representa apenas a intenção de fazer mais e maiores. Não sabem todos os especialistas e todos os cientistas que alguém, algum dia, terá de pagar o que se pediu emprestado. Neste caso, as gerações vindouras, de futuro hipotecado até sabe-se lá quando. Mas a mãe do senhor Gaspar sabe, e a minha também sabia. Falasse-lhe eu em vender dívidas e dava-me um estalo nas trombas, e bem dado. E a falta que ele vai fazendo ao senhor Gaspar!

5 de março de 2013

Capitalistas e conservadores


Dei à Suiça, pela primeira vez, em Basileia, numa plataforma da estação dos caminhos de ferro, era uma madrugada de dezembro e nevava. No cais deserto havia um vulto a alguns 200 metros, do qual me fui aproximando. Estava à minha espera. Tolhido de frio, acabado de chegar das praias da Ilha de Luanda, não consegui, mesmo assim, evitar o sorriso largo. Como conseguira um dasafortunado daqueles saber que eu chegaria naquele comboio em vez de chegar num avião proveniente de Zurique, mais de duas horas antes? A explicação confundiu-me, eu não sabia onde estava, mas estava num outro mundo a que não estava habituado.


Amanheci num quarto de hotel, de tronco nu, a espreitar a manhã da rua onde a neve se acumulava nos passeios. E nos telhados e até nos ramos despidos das árvores. Eu nunca vira neve, a neve em África é outra, e senti-me perante um postal ilustrado. Nos poucos dias que por ali andei, em trabalho, verifiquei que afinal o frio não era tanto e apenas se sentia nas ruas. Mesmo quando os termómetros já desciam a quinze graus negativos durante a noite. As pessoas eram atenciosas, orgulhosas do seu país – pudera! -, falavam todas inglês e perguntavam-me porque não usava eu o francês, à semelhança de todos os portugueses.

Em África eu nunca cheirei o dinheiro e muito poucas vezes lhe vi a cor, surrada pela passagem por milhentas mãos, as notas rasgadas, coladas com fita adesiva, volátil como a gasolina da Galp e como o rendimento dito social de inserção. Em Portugal – ou na Metrópole, que era a terminologia do regime! – ainda menos. Não conhecia nem as notas nem as moedas. Sendo Portugal uno e indivísivel, do Minho a Timor, como se sabe e como se viu, um escudo de Angola não valia, como vossa licença, merda nenhuma.

Nas ruas da Basileia, com os termómetros a marcarem zero graus ao meio dia, eu sentia o frio no tutano de todos os ossos. E cheirava-me a dinheiro por todos os cantos. Na ordem, no civismo, naquilo a que desde aí passei a chamar de consciência coletiva. E no entanto a Suiça é uma manta de retalhos a que chamam cantões, tem os passaportes com a designação impressa na capa em três línguas, cada cantão é tão independente em relação ao vizinho quase como em relação à grande Alemanhã, do outro lado do Reno, um rio da geografia da minha infância.

Mais tarde, um colega meu, suiço de nascimento e por ironia chamado Karl Marx, acrescentaria à minha admiração que nenhum automóvel avançaria desde que eu tivesse um pé na passadeira, que os comboios tinham carruagens de primeira classe mas que ele não conhecia, que as criancinhas iam para a escola e tinham desde logo a aprendizagem de três línguas, duas nacionais e uma estrangeira e que quando a neve se acumulava em frente às casas os moradores eram obrigados a espelhar sal, sem nenhum decreto que o impusesse. E que a Suiça, sendo um país neutro, de vez em quando e quando convinha, macaqueava um pouco essa neutralidade e era capitalista e conservador, para que não ficassem dúvidas. E que não tinha visitas de Estado, quem quisesse ir que fosse, ficasse o tempo que quisesse, pagasse as despesas e se fosse embora.

E como país conservador a confederação quase só centralizava em Berna o que dizia respeito às relações internacionais, era governado por um colégio de sete membros em que a presidência era rotativa e tinha o incorrígivel vício de levar a referendo, absolutamente vinculativo, tudo e mais alguma coisa. Desde a construção de auto-estradas à plantação de pinheiros de Natal. O suiço era, e continua a ser, chamado a participar na vida pública. Num país conservador o regime vivia numa simbiose de democracia representativa e participativa. Em Portugal a democracia é ferozmente representativa em que cada deputado se representa a si, à família e a um restrito círculo de amigos, a participação é tida por anarquia pura e simples, e só se viaja em primeira classe nos aviões e em automóveis de topo de gama. Perante a possibilidade de ter de viajar num Renault Clio, fica-se em terra, que a dignidade da função e dos desempregados assim o exige.

Surpreendente, ou nem por isso, foi a Suiça – país capitalista e conservador – ter decidido limitar as remunerações dos executivos das grandes empresas, por iniciativa – pasme-se! – de uma delas e ter submetido a questão a referendo, tendo a medida sido aprovada. E sem a intervenção do engenheiro Jardim Gonçalves e da sua pensão mínima!

3 de março de 2013

Triplex: 2 de março



O dia de ontem fica para a história, em primeiro lugar, por razões coletivas: o povo saiu à rua, como havia sido anunciado. É preciso que aí se mantenha, cada vez mais, em maior número e por mais longos períodos. Como se esperava, aquilo a que se chama governo, não reagiu. Continuou a assobiar para o lado e a curvar-se em adoração à troika e à Senhora de Fátima. Facto importante hoje é contestar o número de manifestantes e saber se se devem aceitar os números divulgados ou subtrair-lhe duas ou três pessoas. Estão em campo todos os especialistas nacionais em aritmética, assessorados por politólogos, sociólogos, astrólogos e pelo diretor do santuário de Fátima. Alguns até sabem a tabuada e a idade do treinador do Benfica. Mas não nos iludamos, não se espera que daí resulte a mudança do regime ou, sequer, algum ligeiro odor a democracia que atravesse a feroz ditadura financeira e económica que nos oprime!


Efeméride simples e de ordem pessoal, o dia de ontem assinalou ainda o vigésimo ano em que, antes das oito e meia da manhã, fumei os dois útimos cigarros da minha vida. No dia anterior fumara cerca de três maços. Não tive assessores, não utilizei fármacos e não beneficiei do nosso amplo sistema nacional de saúde. E consegui. Entretanto o governo avisa convictamente o incauto fumador de que fumar mata, promove os lucros das tabaqueiras e arrecada o imposto. Fumar continuará a ser permitido com algumas limitações, como a interrupção voluntária da gravidez, conhecida por aborto. Por mim congratulo-me por não ter intenções de retomar o hábito e o vício.


Terceiro episódio, também de ordem pessoal. Mais uma vez a hipocrisia, a mentira, a falsidade e outros atributos que se não recomendam, me visitaram trajadas de gente. Sem convicção e sem crédito. É preciso estar em guarda contra aquilo que não presta e contra o propósito, cada vez mais generalizado, da ignomínia, da difamação e da extorsão pura e simples. E que muito vai por aí!