17 de junho de 2016

O amor não é nenhum sentimento complicado

O amor não é nenhum sentimento complicado, nenhum aperto do coração, nenhuma insónia, nenhuma arritmia. O amor é um conjunto de coisas simples, um sorriso breve, um aceno de mão, um raio de sol, uma carícia nos cabelos, um abraço, uma lágrima furtiva ao canto do olho. O amor é um ninho de cegonhas no cimo de uma chaminé abandonada, a alimentação das crias a que ainda falta o voo, um saltinho de pardal num terreiro de jardim, um soneto de versos decassilábicos, a métrica exacta, a rima fluída e natural, um riso ingénuo de criança. O amor é a falta de abrigo na noite fria, a partilha de um cartão a servir de enxerga num portal vazio, uma ponta de cigarro apanhada do chão, dois goles de vinho barato que dão algum calor à vida curta que sobra na noite longa.


O amor é partilha, não é nem solidão nem abandono. O amor não é o frio do escuro subindo pela espinha, o olhar triste e magoado, o desmazelo descuidado, o desalinho do cabelo e das horas, a água da chuva correndo nas valetas, encharcando os sapatos rotos, enregelando os pés quase descalços até às aurículas onde o sangue promete parar. O amor não é o silêncio sentado na berma da estrada, o tronco curvado, as mãos sobre os joelhos, o nevoeiro escorrendo pela humidade das paredes e subindo o leito do rio, sem olhos que esperem pelo regresso da esperança na quilha altiva das caravelas, o bojo transbordando de especiarias e do sol que nasce a oriente. O amor não é nenhum mistério da estrada de Sintra, o amor é simplesmente ver para fora e olhar em volta.

14 de junho de 2016

Olho para o dia como se não houvesse ruas

Olho para o dia como se não houvesse ruas e o mesmo não fosse mais do que o muro alto ao longo do qual arrasto as horas do relógio que não uso. E assim caminho, como se o mundo inteiro não existisse para além deste estreito passeio, onde mal me cabem os passos curtos e o olhar triste, sempre preso à biqueira dos sapatos e ao nevoeiro das manhãs. Pode ser que um tempo infinito ainda se me abra à frente, se afastem todas as águas do oceano para que eu seja igual, e o caminho se alargue até chegar ao vermelho e branco de que se tinge a vida na grande muralha onde, a oriente, moram as civilizações do passado e do futuro, e as estrelas cintilam como peixes exóticos nos leitos verdes onde correm os rios.


Não interessa sequer que chegues, trazendo debaixo do braço a cruz para pendurar na porta da tabacaria, quando a noite azul se acende sob o luar viscoso do quarto minguante e já não há portas onde se possam deixar as chaves de casa e pendurar o casaco que trazemos pelas costas. Veste uma camisa branca, com a frescura do linho em cada fio por onde possa entrar o silêncio que acompanha a luz clara dos tempos de verão. Deixa que o meu destino more nos dedos esguios da tua mão e que dela se liberte o perfume que tem faltado à primavera e se solte a alegria que sempre sobrou à simplicidade da música de África. Deixa-me que volte para trás, que caminhe descalço e que encontre a beira do rio onde possas vir sentar-te comigo!

2 de junho de 2016

Era ainda uma quase manhã de quinta-feira

Era ainda uma quase manhã de quinta-feira, com os ponteiros dos relógios mal se esquivando ao desconforto da sobreposição ao meio dia, e uma densa neblina nevoenta subindo pelas calçadas, desde o cais das colunas. Pela rua do carmo acima, a voz rouca dos pregões e o peixe nas canastras, à cabeça das varinas, pássaros presos em gaiolas chilreando por detrás dos vasos ao sol, onde ameaça despontar o vermelho vivo das sardinheiras e o cheiro vindo dos fogareiros onde se viram as sardinhas.


E Pessoa descendo da brasileira do chiado, o chapéu enterrado na cabeça, os óculos de míope, um triângulo isósceles pendurado no nariz, as calças curtas, o frasco de aguardente aconchegando-lhe o bolso do casaco. As biqueiras dos sapatos como quilhas de navios que não couberam no porto, todas as velas pandas, o vento soprando de sul, fraco e morno, com o sabor a areia como se fosse nuvem que chegasse do deserto. O rumo seguro, o destino certo, como se o olhar fosse um homem imóvel preso ao leme, indiferente às tempestades e às curvas do caminho, o abrigo à espera sob a luz difusa das arcadas.