31 de agosto de 2004

O placard feito pelo nosso cônsul em Havana


Em Julho de 1871, já lá vão 133 anos, um tal de Eça de Queirós, acidentalmente nascido na Póvoa de Varzim e que passou à história como o nosso Cônsul em Havana, escrevia a meio de uma das farpas que cravava com a mestria de El Cordobés no lombo da sociedade portuguesa do seu tempo:

Houve este mês um pânico patriótico...
...

Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias - e justamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! Todavia a nossa marinha, ausente dos mares, sulca profundamente o orçamento. Gasta 1.159.000$000!

Que realidade corresponde a esta fantasmagoria das cifras? Uns poucos de navios defeituosos, velhos, decrépitos, quase inúteis, sem artilharia, sem condições de navegabilidade, com cordame podre, a mastreação carunchosa, a história obscura. É uma marinha inválida. A D. João tem 50 anos, o breu cobre-lhe as cãs: o seu maior desejo seria aposentar-se como barca de banhos.

A Pedro Nunes está em tal estado que, vendida, dá uma soma que o pudor nos impede de escrever. O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes - mas não pode pedir troco.

A Mindelo tem um jeito: deita-se. No mar alto, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais da marinha que embarcam neste vaso fazem disposições finais. A Mindelo é um esquife - a hélice.

A Napier saiu um dia para uma possessão. Conseguiu lá chegar; mas exausta, não quis, não pôde voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe Camões, o Sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível, como morta, não se mexeu.

Das oito corvetas que possuímos são inúteis para combate ou para transporte - todas as 8. Nem construção para entrar em fogo, nem capacidade para conduzir tropa. Não têm aplicação. Há ideia de as alugar como hotéis. A nossa esquadra é uma colecção de jangadas disfarçadas! E este grande povo de navegadores acha-se reduzido a admirar o vapor de Cacilhas!

Têm um único mérito estes navios perante uma agressão estrangeira: impor pelo respeito da idade. Quem ousaria atacar as cãs destes velhos?

As coisas, felizmente, já não são bem assim. Salvo quanto a um certo pânico que, ao que parece, foi atavicamente herdado da mãe de D. Afonso Henriques. Ainda a semana passada! Com despropositadas intenções um navio de grande calado e maior tonelagem, navegando com a bandeira holandesa içada no mastro, quis utilizar as falinhas mansas como disfarce e invadir águas portuguesas como se fosse acostar ao porto da Figueira da Foz para descarregar sardinha miúda e jaquinzinhos. Armados de binóculos logo cinco vigilantes ministros se perfilaram ao longo da praia perscrutando o horizonte através do nevoeiro. Enquanto isso o ministro da pasta encomendava a redacção de um despacho lavrado em elegante cursivo inglês numa apresentável folha de papiro importado das margens do Nilo. Que solemente assinou perante a potência dos holofotes e as objectivas das câmaras de televisão. Para simplesmente decretar que não era dada autorização de acostagem por razões diversas e mais uma.

Como nunca se sabe aquilo que se pode esperar de holandeses - basta que se recorde Luanda a quem acudiu Salvador Correia de Sá! - o ministro mandou avançar duas corvetas para o limite das águas territoriais. Que logo largaram do Alfeite com um marujo à proa a largar corda braça a braça, até ao rigor das 12 milhas, nem mais uma polegada. Chegadas ao local estenderam na crista das ondas uma clara linha de fronteira em fio de pesca. Enquanto volteavem em círculo, vigilantes e atentas, com o comandante na ponte de comando bufando forte e grosso para um megafone avisos previdentes e sensatos. As peças de artilharia armadas, apontadas ao bojo do navio invasor e os marinheiros no convés, assestando armas, prontos para a abordagem, sem arredar pé, nem para mijar. Enquanto isso, envergando farda de almirante, o ministro apresentava-se nos estúdios de uma televisão de subúrbio, acompanhado de trinta e oito calhamaços de direito marítimo e mais onze pareceres jurídicos subscritos pelo ministro do ambiente. Porque nem o comentador das noites de domingo nem o assessor das gasolinas são juristas em que um ministro possa confiar, mesmo abrindo os cordões à bolsa no que respeita a honorários.

Para lá da linha, severamente mantido em respeito, o barco invasor balouça ao sabor das ondas com a numerosa tripulação alinhada na amurada. Nada menos que seis marinheiros disfarçados à civil, dos quais três travestidos de mulheres. Para o embuste, tentando simular um cavalo de Troia, a ver se pega!


1 Comentários:

Às 11:13 da tarde , Blogger LFV disse...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

 

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial