Temos que crescer menos que a Espanha?
Creio que foi o primeiro ministro, Dr Barroso, quem arremessou a pergunta num dos últimos dias. Quando morna, entorpecida e flatulenta, decorria a discussão do Orçamento de Estado para 2004. Alguns deputados deixaram de bocejar, outros chegaram mesmo a abrir os olhos e dois ou três até bateram palmas. Irado, quase aos gritos, projectando as palavras, perguntou: porque razão havemos de crescer menos que a Espanha? Ou menos que a Irlanda?
Então o Sr. Primeiro Ministro não sabe uma coisa destas. Então tem o desplante de lançar tais questões a tão distinta assembleia, convictamente concentrada na sua modorra e na sua falta de ideias. Então não vê que os países ibéricos divergiram a partir do momento em que deixaram de ser governados por homens que usavam botas. Como o Dr. Salazar e o generalíssimo. Não entende ele que Espanha obteve o seu estatuto democrático sem ter necessidade de fazer revoluções. Mesmo que estas fossem com cravos vermelhos espetados nos canos ferrugentos das espingardas velhas e obsoletas. Chefiada por oficiais de baixa patente que depois a emergente classe política foi devorando, faminta de cargos e mordomias, em menos do se diz que o diabo esfrega um olho.
Não sabe ele que o rei, D. Juan Carlos, foi a charneira de uma mudança que chegou ao mais alto dos Pirinéus. Calma e tranquilamente, sem sobressaltos e sem o esbanjamento dos stocks das caves Pedro Domecq Não se lembra daquele tal tenente Molina que invadiu as Cortes a gritou: tudo deitado, de mãos atrás das costas! E da manifestação de unidade que se seguiu, com o rei à frente, feito plebeu, em defesa do regime. Dos governos sucessivos do D Felipe que levaram a Espanha à chamada Comunidade Económica Europeia, recolheram os fundos a que tiveram direito e, mais do que isso, os investiram e construiram estradas que chegaram até Tui. Com toda a corrupção e todos os escândalos que o cansaram a ele e aos espanhóis. Até estes terem preferido o D. Jose Maria que continuou a obra com um mínimo de sensatez, de profissionalismo e de honestidade. Mesmo para além da sua arrogância congénita mas contentando-se, apesar de tudo, com o copo plástico de cola-cola e a palhinha que, para a sorver, lhe serviram em Washington. E que agora, antes de chegar ao fim da validade, proclamou que se ia embora, pronto.
E por cá, a oriente do Cabo da Roca, o que é que foi acontecendo? Primeiro, ninguém teve sequer a coragem de informar o Dr António das botas, doente e tonto, que já não mandava, que já não era dono de nada. Tal era o medo de que ele ainda tivesse a lembrança de comunicar aos jornais as suas exonerações. O professor Caetano lá foi tentando levar a sua cruz ao calvário, com as dificuldades que não contou e as caneladas raivosas do Sr. Casal Ribeiro. Até que alguns capitães decidissem agrupar-se em sindicato, pusessem as espingardas ao ombro, penduradas pela bandoleira, e viessem de Chaimite para a rua, que eram o transporte de que dispunham. Rapidamente se chegou à conclusão de que Portugal era sem futuro. Tão depressa que, antes, apenas figuras importantes que tinham dinheiro para o bilhete tinham embarcado para o Brasil, como a família real. Os de mais modestas posses ficaram-se pela península, em segurança, a norte do rio Minho.
Em pouco tempo o major Otelo equivocou-se, confundiu a arena do Campo Pequeno com a parada de um quartel e quis enchê-la de adolescentes imberbes mas democratas, a marcharem e a cantarem o hino da mocidade portuguesa. Foram-se fazendo eleições para eleger deputados que fizeram os governos cair para que se fizessem novas eleições de que pudessem sair novos parlamentos e novos ministros. O Dr Cunhal foi ministro e o almirante Pinheiro de Azevedo foi primeiro ministro, mandando à bardamerda os manifestantes que o sequestravam em S. Bento. A rebaldaria medrou e o coronel Eanes chateou-se, pensou e disse: porra para isto! Ele, que até é um homem educado e de princípios.
Decidido, fartou-se e fardou-se, saindo à rua. Chefiou, ao que dizem, uma coisa a que chamaram golpe, acto heroico ou coisa irrelevante, conforme os dividendos que daí colheram. Gratos, os portugueses confiaram-lhe a presidência da república. Fez, como fariam os seus sucessores, os dois mandatos que a constituição permite. No percurso abriu a porta da gaiola ao Dr Soares e deixou-o ir em liberdade, voando como um passarinho, sem resgate e sem grilhetas.
O Dr Soares regressou, voltou a sair, voltou a regressar e levou heroicamente, sem perguntar nada a ninguém, o país para a Comunidade Europeia. O povo, venerador e obrigado, pô-lo em Belém para os dez anos da praxe. O professor Cavaco foi entretanto fazer a rodagem ao seu carro novo, ganhou um serviço de cristais na quermese de uma festa de província em que não pensara participar. Foi feito primeiro ministro na Figueira da Foz. Foi andando, persistente e cauteloso, determinado e confiante, fazendo e dizendo que fazia. Até que se viu envolvido na roda acelerada de um corridinho algarvio, com músicos que não conhecia e o chão escorregadio da cera fresca. Caiu, por descuido ou cuidado da sua própria orquestra.
Fizeram-se novas eleições, o engenheiro Guterres deixou embevecidos os progenitores e ganhou. Prometeu mudanças, mundos e fundos, a turba aplaudiu e acreditou: agora é que é. Não foi e quanto menos era mais o engenheiro prometia e quanto mais ele prometia menos era e, à boa maneira dos hábitos políticos do Sr Luís Pacheco, ia crescendo a rebaldaria a que toda a gente já se ia habituando. Enquanto aprendia inglês e ficava a saber o que era isso de “boys” e de “girls”. Na oposição o Dr Barroso discursava, barafustava, esgrimia e ninguém acreditava, ninguém abandonava a hibernação que era um estado de espírito. O Dr Santana mantinha-se a banhos na Figueira e só ia a Lisboa para o namoro ou para um passeio nocturno pelas docas.
Até que, numa noite de inverno, o engenheiro gritou e disse: não estou para isto, não foi para isto que eu queimei as pestanas a estudar. Vou-me embora. E bateu com a porta que se fechou com estrondo. De seguida, claro, o seu partido perdeu as eleições. Como sempre, depois do escrutínio, todos foram para a rua, carregados de bandeiras, com cachecois ao pescoço e a gritar ganhámos. O Dr Barroso subiu a primeiro ministro, com a ajuda do Dr Portas, a quem retribuiu como merecia, dando-lhe emprego, casa, cama e roupa lavada.
Hoje quem manda no país é o professor Marcelo. Fá-lo ao domingo e chega-lhe meia hora na antena da televisão do Big Brother, logo depois da missa e da maquilhagem. A classe política teme-lhe o discurso arrasador e, com o devido respeito, mija-se de medo. Os alunos receiam-lhe o rigor nas avaliações e a eminência dos chumbos nos exames de frequência. As adolescentes, com acne na cara, ouvem-no embevecidas, ruborizando-se quando sentem que o coração lhes bate mais depressa. E até as criancinhas, muitas vezes renitentes em deglutir a sopa, esbugalham os olhos, quase parecem tomadas de hipnose e rapam o prato.
É por isso que a Espanha cresce mais do que nós. E é quase dona da rua de Santa Catarina, da Batalha até ao Marquês. Ou Largo da Aguardente, como aprendi com as crónicas dominicais do Sr. Germano Silva no Jornal de Notícias!
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