27 de novembro de 2003

Começa a cheirar a Natal

A pretexto do negócio os restaurantes começaram a afixar cartazes nas vitrinas anunciando aceitarem marcações para festas de Natal. Informam sobre o número de salas disponíveis, a capacidade de lugares de cada uma delas, as condições de comodidade e de conforto, as facilidades de transporte ou de estacionamento. E, obviamente, as iguarias à disposição dos convivas, sempre frescas, sempre das melhores proveniências, sempre objecto da mais profissional e competente confecção. Quanto a preços é o que se sabe, a vida pela hora da morte, está tudo muito caro, o pessoal escasseia mesmo que o desemprego aumente, além disso ganham salários mínimos incomportáveis. De forma que não podemos fazer milagres, menos do que isso por cabeça não pode ser, sem bebidas, e não chega para pagarmos a electricidade. Não fossem V. Exas. clientes de longa data, que muito consideramos, e nestas condições até recusaríamos o serviço.

A pretexto da confraternização e da solidariedade com toda a gente, porque o Natal é apenas uma vez por ano, as empresas começam a organizar-se em mais pequenos grupos que escolhem datas, seleccionam locais, negoceiam preços e ementas e marcam horas para que o repasto tenha início. Os administradores descem ao nível dos contínuos, vêm sentar-se à mesma mesa, engolindo apressadamente o caldo verde onde a couve ainda parece fugir para a horta. Condescendem a ir no bacalhau com natas, salgado e com espinhas pelo meio, sem o mesmo apuro a que o Escondidinho os habituou. Sujeitam-se a beber uma mixórdia a que chamam vinho, de que ninguém vê nem as garrafas nem a proveniência. Alguns, mais ousados, ainda recusam: só bebo água, tenho uma úlcera duodenal de origem nervosa, pensando para consigo: então o estúpido do Lázaro, que é contínuo, vai lá perceber esta merda?

Depois das rabanadas, encharcadas em vinho do Porto, açúcar e canela, e do café de má qualidade, mal tirado e frio, espera-se que os senhores administradores digam meia dúzia de palavras. A maioria deles tem o mesmo à vontade que a maioria dos deputados que preenchem as bancadas da Assembleia da República: não sabe dizer nada. E sendo assim, como faz muitas vezes o Dr. Ferro, trazem uma cábula no bolso onde previamente escreveram o que vão dizer, mesmo que frequentemente atropelem a leitura. Mas está bem, nem todos lêm como se fosse o Sr. Vítor de Sousa a dizer poemas do Sr. Eugénio de Andrade.

As palavras são normalmente como as confraternizações: cínicas, falsas e hipócritas. Porque durante um ano se andaram todos a tentar enganar uns aos outros, muitas vezes até conseguindo-o. Os senhores administradores pensando: então a Dra Manuela Leite não aumentou a ponta de um corno aos calaceiros dos seus funcionários e íamos nós agora aumentar estes inúteis e mandriões? Quando a crise está à vista de todos e os nossos lucros só cresceram quinze por cento em relação ao ano passado! Por seu lado os empregados, diligentes na resistência passiva e na sorna vão pensando: sacanas! Mudaram-se para casas novas, com piscinas no quintal e garagens para quatro carros, aquecimento central e paineis solares nos telhados para terem subsídios do Estado, deram carros novos aos filhos, vão para Lisboa e quem os quiser encontrar é na Cova da Onça. E querem que a gente trabalhe, merdosos! Vou ao médico da caixa, sinto-me doente de revolta, vou ficar de baixa para aí um mês ou mais.

É esta, muitas vezes, a solidariedade da quadra natalícia, quando não é pior. Porque frequentemente os convivas vão-se mutuamente apunhalando até à beira da mesa. Para acabarem a matar-se à hora do café e do digestivo.

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