21 de novembro de 2003

O primeiro ministro vai ao professor Karamba – II

Entrou na sala pequena e obscura, cheirando a bafio, com uma secretária ao fundo, sem idade e sem estilo, à qual se sentava o professor. Por detrás deste a parede, coberta por um reposteiro de tecido velho e debotado, ameaçando despegar-se e cair. Em cima da secretária uma inevitável bola de cristal – vidro vulgar de uma fábrica da Marinha Grande – como nos livros de bruxarias e nos espectáculos do Sr Luís de Matos. Depois baralhos de cartas – nos quais não viu nenhuma manilha, por isso nem davam para a sueca – de vários feitios e desenhos, conchas, búzios, cabeças de alho – deixadas como oferta pelo Sr António Oliveira antes de seguir para a Coreia com a selecção nacional de futebol – e outros adereços cujo nome desconhecia e cuja função ignorava.

Cumprimentou, que era bem educado, tinha recebido lições do grande educador, o camarada Arnaldo Matos. O professor sussurrou qualquer coisa que não percebeu mas que certamente teria sido a resposta. Depois disse-lhe que já estava fora do seu horário mas que a sua função era resolver os problemas das pessoas e que então lhe dissesse ao que vinha. Assim, de gola subida, todo embuçado, como se se preparasse para, pela madrugada, descer aos paços do concelho e proclamar a república.

Mas, para vires assim – o professor tratava toda a gente por tu, nada de igualdades como tinham querido os bolcheviques que, mesmo desaparecidos, o Dr Pacheco Pereira continua a combater feito D. Quixote – deves estar metido em boa. Bem, mas para ele não havia impossíveis, tanto assim que numa das paredes laterais do consultório tinha um quadro pendurado onde se dizia: “os problemas difíceis resolvem-se na mesma hora, os impossíveis na hora a seguir”. Referiu a sua muita e prolongada experiência, de África à América, tinha sido consultado pelo Sr Bush por causa das armas de destruição maciça no Iraque, o homem não dispensara o seu conselho. E, como vês, a guerra ele já disse que acabou, os outros é que ainda não sabem!

Tens problemas de amor, as garinas não vão na tua, os negócios não marcham, é a família, os filhos na passa? Não te sai o totoloto, é alguma coisa de inveja, – se for até que podes pagar bem, pensou e não disse – mau olhado. Anda, senta-te, fica à vontade, conta os teus problemas para os analisar com toda a precisão. Os primeiros resultados são garantidos logo após a primeira semana e feita a boa cobrança do cheque – os caloteiros são do caraças! – mas se pagares em dinheiro pode-se abreviar tudo um pouco.

A custo falou, primeiro lentamente, depois mais confiante soltou-se-lhe o verbo. Estou lixado, andam a seguir-me, metem-me folhetos do Continente na caixa do correio junto com cartas anónimas. Ando apavorado, tenho pesadelos durante a noite, mesmo quando digo que durmo como um anjo. Vejo pontes a cair, ajudantes a fazerem favores uns aos outros, outros com falta de confiança a recomendarem aos sobrinhos que depositem as economias na Suiça. Apavoro-me de todo com receio de perder o emprego, tenho filhos a estudar sem cunha metida ao ministro, ainda lhes cancelam a matrícula, agora que as propinas aumentaram.

O professor ouviu, a mão pousada sobre a bola de cristal, a vestimenta africana no corpo, o barrete enfiado na cabeça, tapando-lhe as orelhas do frio de Novembro. E disse, o assunto é bué de complicado, não está fácil, vou ter de estudar esta noite, vamos a ver se o tempo chega. Mas não te preocupes, vai para casa, toma uns valiuns à maneira – eu já te passo a receita! – vais de facto dormir como um anjo. Deixa ali o cheque na bandeja, ao portador e com tecto, não há recibo que não sou o canalizador daquela Dra Manuela Leite, já ouviste falar? Leva um cartão, está aí em cima da mesa, tem o número do telefone e o horário das consultas, liga daqui a uma semana, já te digo o resultado.

Saiu como entrou, encafuado no disfarce, descendo as escadas colado à parede. Saiu para a rua depois de ter olhado para os lados a ver que ninguém passava. Estugou a passada até ao carro do assessor onde entrou como se tivesse feito a preparação dos GNR que foram ajudar à liberdade do Iraque. Suava em bica apesar dos onze graus que a meteorologia, funcionando mal, noticiava. Por entre dentes disse apenas e rapidamente: vamo-nos embora!

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