O Dr Sampaio já tem governo
De novo, ao fim de duas semanas, regresso da minha ida a Ourém sob um quente e cinzento céu de Verão. Ouço música durante a viagem e deixo de lado o interesse pelas notícias. Nunca é tarde para a desgraça e, assim sendo, esta bem pode esperar. Arrumo o automóvel e subo as escadas - dois andares - de regresso a casa. Num saco plástico carrego uma melancia, fruto que apenas saboreio uma vez por ano. Há muitos anos. A melancia é um fruto simpático: sendo de boa qualidade, é refrescante. Mesmo não sendo, é enganadora e traiçoeira para quem a não conhecer: verde por fora, revolucionariamente vermelha por dentro. Com a particularidade multiracial das sementes: pretas umas, brancas outras. Dou por mim a ensaiar comparações que esqueço rapidamente. As escadas, felizmente, são curtas e a melancia é demasiado pesada. Não adianta pensar no que me lembra ou no que me faz lembrar.
Em casa ponho-me indecorosamente de chinelos. Esperando não escandalizar os rígidos princípios de decoro da vizinha da frente: uma velhinha com mais de setenta e cinco anos, viúva, cabelo esmeradamente tratado e - penso eu - confortável pensão de reforma. Confortavelmente aumentada pela ex-ministra das finanças nos dois últimos anos. Na intenção de fazer de Portugal um dos países mais desenvolvidos da Europa. Atiro-me, como se isso fosse um desporto radical, à procura das notícias. Importantes desde logo duas. Avidamente nem lhes tomo o gosto, engulo-as inteiras como se fossem comprimidos. Mas sem sequer precisar da ajuda de um qualquer líquido.
A primeira: Lance Armstrong chega aos Pirinéus, mobiliza as tropas, ataca por ali acima, destroça o inimigo. Parece W. Bush a atacar o Iraque: vai tudo à frente. Com a diferença de não haver petróleo em Andorra e de Armstrong comandar ele, em pessoa e no cenário real, a batalha pela amarela. Que ainda não conseguiu. Resta saber quando unilateralmente declarará terminada a guerra, decretará a democracia e será atacado por todos os resistentes ases do pedal. Nós temos atrás dele, como aliado, um nosso compatriota. Que se não limita a anunciar a chegada dos convidados e a apresentar aos comensais a lista de vinhos. Sem que isto me recorde seja quem for e, seguramente, sem que haja comparação possível. Nem com nada. Nem com ninguém.
A segunda: para que tudo fosse de sua responsabilidade o Dr Sampaio empossou o seu governo. Que ontem, a coberto do pseudónimo de Santana Lopes, ele próprio anunciara. Com treze ministros - que pode dar um azar do caraças quando se sentaram à mesa do Gambrinus - seis dos quais fora do prazo de validade como os iogurtes. Dos outros sete, uns aposentados, outros desconhecidos. Nem tendo quem o faça - o professor Amaral recusou o convite - o Dr Sampaio faz ele próprio o elogio do governo. Que cheira a esturro e parece sopa requentada que tem bispo, aquele amargo sabor a fumo. A cerimónia é suave, Santana está divertido, até ousa uma graçola ou outra. Fala de rigor orçamental, o que me faz rir e me recorda Guterres a dar uma conferência sobre a aritmética e a sua complexa aplicação ao PIB. Bagão fará seminários sobre finanças públicas e os mais de oito anos que Jacob, associado do Benfica com mais de vinte cinco anos de quotas em dia, penou à espera do triunfo na superliga. E vai continuar a penar.
O Dr Sampaio está feliz e contente. A mulher e os filhos orgulham-se dele. O Herman José vai convidá-lo para aquele programa cujo nome se esqueceu. O major Loureiro sugere que se reveja a constituição e se proponha Sampaio para um terceiro mandato e se aumente a duração deste para dez anos. Que as legislativas se realizem quando a maioria absoluta do eleitorado o requerer. Que as autárquicas se realizem quando os eleitos morrerem ou quando pedirem escusa, desde que esta obtenha o parecer favorável da maioria dos munícipes, do pároco e do sacristão, nos casos em que este ainda exista.
O Dr Sampaio tem um presidente. O Dr Sampaio tem uma maioria. O Dr Sampaio tem um governo. Como se isso não bastasse, o Dr Sampaio tem ainda um cartão de sócio do Sporting Clube de Portugal.
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