28 de outubro de 2004

O cinema regressa à baixa do Porto

Quase parece um título a brincar, e melhor seria que o fosse. Não sou portuense de nascimento. Sou-o por contingências da vida e por trinta anos de residência. Habituei-me às manhãs húmidas de inverno, com o ressoado a escorrer pelos vidros grossos das montras dos cafés. Senti a cidade de aspecto austero, quase medieval, o granito no empedrado das ruas e nas frontarias dos prédios. Um meu velho amigo inglês, já falecido, dizia ser o Porto a cidade mais europeia do país. Escura, quase triste, acolhendo-se dos rigores do tempo. Amava-a.

Sempre me fascinou a história que no Porto enche todas as ruas. Aqui, na Rua de Cedofeita, esteve instalado o quartel general das tropas liberais. Mudando-se do palácio dos Carrancas por causa da artilharia miguelista que, de Gaia, ali poderia chegar. O primeiro, o único semáforo em funcionamento há trinta anos, pendurado a meio do cruzamento das ruas da Constituição e Antero de Quental, accionado manualmente por um sinaleiro. A economia crescendo no café, com o cimbalino sendo coisa rara, uma verdadeira excepção.

Leio, como versículos da bíblia, quanto Germano Silva vai escrevendo no Jornal de Notícias e na Visão. Imagino o que ele trabalha para me dar mais meia dúzia de linhas de coisas que desconhecia. E que coisas continua a ensinar-me! Mas a baixa foi restando ao abandono, de prédios nobres transformando-se em ruínas, em plenas ruas de Sá da Bandeira e de Santa Catarina. A baixa está deserta de pessoas e de vida. A maioria dos seus habitantes morreu, o activo comércio de há anos fechou portas. Os fregueses morreram, os comerciantes seguiram-nos, as grandes superfícies contribuíram com o resto.

Dói-me, pela saudade, que a baixa do Porto passe a ter de novo e apenas uma sala de cinema. A única, por carolice de um visionário que acredita. As outras - algumas não tão antigas como isso! - conservam as portas encerradas, acolhem ratos, gatas com cio e, por vezes, desiludidos escravos da droga. O município promete a revitalização. E enquanto a promete pratica o esbanjamento na construção da Casa da Música. E mantém fechado, sem uso e sem destino, o cinema Batalha. Ali mesmo, na praça com o mesmo nome, onde a história foi arrancada à força do camartelo, sob os auspícios da capital europeia da cultura. Quase nem velhos há que lhe ocupem todos os bancos em algumas tardes soalheiras de Outono.

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