14 de novembro de 2003

Gasta um gajo uma porrada de massa para nada

Pronto! Pensem o que pensarem, digam o que disserem, teimem comigo até de manhã, mas não está certo. Venha até a Dra. Manuela Leite e mais o canalizador – canalizador é picheleiro, oh! cambada. Não se está mesmo a ver? – que ela agora contratou. A recibo verde, está bom de ver. Mas uma coisa destas não se faz a ninguém. Nem a mim, benza-me Deus, a quem tudo acontece, a quem o azar persiste em perseguir, a quem nada corre bem. Por isso saio eu da cama alvoraçado todas as manhãs, à espera que também me apareça o cobrador do fraque e me deixe de tanga.

Então anda um gajo – neste caso, eu! – por aí, descansado, a navegar, a descobrir recantos e encantos, seguindo atalhos e mais atalhos, levando nas trombas com janelas sobre janelas – “pop ups”, parece que á assim que lhes chamam – até lhe acontecer, naturalmente, descobrir o anúncio. Primeiro li, devagar para perceber bem. Voltei a ler, que a letra era muito miúda para a minha miopia e acho que entendi. Depois, com alguma dificuldade, torci o tronco, empinei a cabeça e pus-me – salvo seja, hein! – na fotografia. De um lado, do outro lado, de baixo para cima, a remirar, para não perder pitada. E agradou-me, pronto. Acho que era mesmo o que andava à procura, sem nunca mais encontrar. E decidi-me logo ali: vou acrescentar esta morada aos meus favoritos e vou responder ao anúncio quanto antes. E respondi!

Depois de me ter esmerado na caligrafia, tratado cuidadosamente da ortografia, revisto a gramática com a Dra. Edite Estrela na cabeça e caprichado na escolha do papel – linho bond 120 gramas, uma raridade! – fiquei certo de que iria ser chamado para a entrevista. E pensei: tens de deixar boa impressão logo à primeira. Não te vais apresentar assim, de cabelo surrado, com a gordura e o gel a confundirem-se, a barba crescida e um bigode que não tem nada a ver com a bigodaça nobre do Artur Jorge. Nem com essa t-shirt com o logotipo do Minipreço estampado quase na barriga ou com as calças de ganga azul, meio rotas nos joelhos e já muito coçadas no cu, com vossa licença. E as sapatilhas, compradas na feira da Senhora da Hora, a um sábado de manhã, cambadas, o rasto quase careca como pneus que já não dão para a estrada. O corpo, esse corpo denunciando copos de cerveja a mais, o desvario das tripas todos os sábados ao almoço, bem regadas com boas pomadas durienses. Os bagaços no fim, sempre acompanhados por café, para cortar o efeito. Tens de tratar dele, enquanto esperas.

Corri a meter-me numa das lojas da Zara – o lucro vai para Espanha, mas paciência, vamo-nos habituando! – que não fecha à hora de almoço. Certifiquei-me de que tinha saldo disponível no cartão Visa e pronto. Foi um fartote! Peúgas, cuecas – “boxers, boxers”, é assim que se lhes chama agora – camisa, gravata, um fato com colete, tudo a combinar. Não fosse eu achá-lo muito mariconso até creio que podia parecer o Zé Castelo Branco a chegar de Nova Iorque, sem jóias, está bom de ver. Ah! E uns sapatos novos comprados na Charles, que os da Zara era tudo “made in Spain”, a roerem-me os calcanhares e a apertarem-me os calos. Pretos, de verniz, a brilharem até no escuro.

Consultei as páginas amarelas, telefonei a um amigo, ao fim do dia segui para um ginásio que me ficava mais à mão, a inscrever-me. Perguntei o preço, porra que é caro, não podia ser menos, mas tinham tudo: piscina, jacuzzi, banho turco, sauna, musculação, aeróbica, karaté e o mais que não consegui fixar. Saquei do Visa, quase que lhe rebentei com o saldo, vou andar seis meses a pagar juros aos judeus do banco, mas não é por isso que se abandona um projecto. Comecei a minha preparação. Custou-me de início, só ferrugem, mas perdi logo três quilos na primeira semana. Sempre a mesma rotina, sem falhas, como num motor da Ferrari preparado para o grande prémio de Silverstone. Bicicleta, tapete rolante, remo, abdominais, braços, pernas, piscina, banho turco. Depois um duche. Saída, de gatas. Mas os resultados viram-se, estão à vista.

Há dois dias fiquei de perfil, a olhar-me ao espelho e quase ficava com inveja da imagem reflectida. Que diferença, achei que estava pronto, podia ser convocado, na entrevista não seria eliminado. Mas agora, vejam vocês, vem esta fulana com esta conversa. Sem aviso prévio, a defraudar expectativas. Como no funcionalismo, os concursos já não servem para nada, agora é tudo por escolha directa e por nomeação. Cor de rosa de uma vez, laranja de outra, azul de quando em quando. Como eles dizem, “boys” e “girls”, as moscas é que mudam, o resto não.

Estou desalentado, quase me deprimo como a economia do país e as finanças da Dra. Manuela Leite. Vou aos pequenos anúncios do Jornal de Notícias, há sempre mulheres de meia idade, elegantes, cultas, educadas e com posses a quererem casar. Com um bocado de sorte ainda me sai uma que tenha que chegue para os dois. Podia viver honestamente e deixar o uso compulsivo do Visa. Assim Deus me ajude mais do que desta vez, que eu mereço. Porque desta gastei uma porrada de massa para nada!

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