Uma radical tarde de quarentena
Sou, como sempre fui, um
tipo muito racional e organizado, exceptuando as vezes em que não sou nem uma
coisa nem outra e ainda aquelas em que sou irracional e desorganizado. Tirando
isso, faço por programar as minhas tarefas, tirando as vezes em que não penso
nisso e não programo nada. Acordei a meio da noite e estava escuro e não o
contrário. Nem o silêncio entrava pelas frestas da janela, só uns curtos raios
mortiços do candeeiro público que dorme em frente. Perdi o sonho que sonhava e
esqueci-o, não devia ser grande coisa. Mas tive pena, faltam-me castelos no
vale do Loire, princesas encantadas, a inspecção militar, aquele aliciante
estudo dos Lusíadas no antigo quinto ano dos liceus, tanto tempo para fixar
apenas os dois primeiros versos. Preciso de recordar as coisas que detesto, a
par da sopa de alho francês e da superior qualidade noticiosa do correio da
manhã, que avalio por não conhecer. Embrulhei-me na roupa e devo ter adormecido
de novo porque voltei a acordar mais tarde. Mas sonhei que lavava as mãos.
O sol hoje surgiu no
horizonte às sete horas e onze minutos, nem mais nem menos. Devo ter acordado
por essa hora, quando já um nevoeiro fraco me entrava pelos olhos. Eram horas
de lavar as mãos. Creio que me levantei imediatamente, eram cerca de oito e
trinta. Lavei as mãos, fiz a barba, lavei as mãos, tomei banho – porque hoje é
sábado, saravá Vinícius de Moraes –, lavei as mãos, tratei do pequeno almoço,
lavei as mãos, lavei os dentes, lavei as mãos, vesti-me, lavei as mãos e calcei-me
e lavei as mãos. Ou ao contrário, mas lavei as mãos e lavei as mãos.
Vi que estava cheio o saco
do lixo e fui lavar os olhos e as mãos. Arranjei um saco novo para pôr no
balde, puxei os atilhos do saco cheio, dei-lhe dois nós, fui lavar as mãos duas
vezes, abri a porta da rua e pu-lo do lado de fora. Fechei a porta de novo, fui
buscar um pano limpo, encharquei-o com álcool, limpei as maçanetas da porta,
limpei as chaves, limpei as mãos. Fui lavar as mãos.
Programei a ida ao contentor
para as dezasseis horas e quarenta e sete minutos. Com rigor, por faltarem
apenas três horas e quinze minutos para o por do sol, que hoje é às vinte horas
e dois minutos exactas. Calcei umas sapatilhas velhas. Como não obedeceram à
minha chamada, tive de as puxar de longe, com uma vassoura. Lavei as mãos,
calcei uma luva descartável na mão direita, abri a porta com a esquerda. Peguei
no saco pelos atilhos, sempre afastado de mim, desci as escadas, abri a porta
da rua com a mão direita. Olhei para todos os lados, que são dois, não vi
ninguém. Pensei em lavar as mãos.
Com passo resoluto e lento,
com o saco sempre pendurado pelos atilhos, sempre afastado de mim, comigo a
insultar-lhe toda a ascendência de hidrocarbonetos, caminhei até ao contentor.
Uma longa distância de cem ou cento e vinte metros, olhando sempre para diante.
Não se vê vivalma, não há lavatórios, não posso lavar as mãos. Ergo a tampa do
contentor com a mão direita, ensaio com a esquerda um lançamento de martelo,
atiro com o saco lá para dentro. Dou meia volta para o caminho de regresso. Uma
gaivota grasna no ar, até fica bem no céu azul, por sorte não me acerta. Devia
lavar as mãos, se me acertasse tinha de ser também a cabeça. Subo as escadas de
volta ao meu exílio e ao meu aconchego, entro em casa, pego no trapo e
encharco-o em álcool. Limpo as maçanetas, fecho a porta, limpo as chaves, lavo
as mãos, tiro as sapatilhas sem lhes tocar com as mãos. Lavo as mãos, calço uns
chinelos, apetece-me coçar uma pequenina comichão ao lado do nariz, vou lavar
as mãos. Passo uma unha levemente pelo ponto comichoso, volto a lavar as mãos. Estou
exausto. Lavo as mãos. Sento-me. Pego num livro, Contos Completos, de Gabriel
Garcia Márquez. A cada página que viro, vou lavar as mãos. O detergente já se
me está a acabar. Antes que se acabe, vou lavar as mãos. Estou pronto para a
próxima página, estou é tão cansado!
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