Natal
Antigamente o largo era o
centro do mundo
E nele se juntavam os homens
Depois de dias presos ao
cabo da enxada
O rosto tisnado pelo sol
As mãos calejadas do esforço
O olhar vazio de esperança
Depois o largo cresceu
Perdeu a sombra das árvores
E o chilreio dos pássaros
Vieram bancos novos pintados
de vermelho
Onde se sentaram os homens
Que se fartaram da vastidão
da jornada
E se cansaram da inutilidade
da espera
Discutindo as dificuldades
da vida
E a falta de pão para a
caterva de filhos
Fizeram-se velhos
E foram partindo sem se
despedirem
Depois das trindades soarem
no sino da igreja
E do crepúsculo descer sobre
a ladeira
Que escorrega para dentro da
noite
Fez-se mais pequeno o mundo
Como se mais ninguém
coubesse nele
E apenas numa seara
Amadurecessem todas as
espigas da planície
Ondulando levemente ao sabor
da brisa de poente
Tudo ficou mais fácil e mais
perto
Quando se alargaram as
estradas
Deixaram de nascer tantas
crianças
E se começaram a fechar
escolas
Por falta de alunos e ordens
do governo
Ficou trôpego o pároco
Que a idade levou ao
recolhimento num abrigo final
À espera da sopa da tarde
E do eterno descanso
Enquanto a china vermelha e
branca
Com as garridas cores da
vida
Deixou de ficar do outro
lado do mundo
Como no tempo de Drummond
Envolta em distância e em
mistério
E começaram a aparecer pelo
largo
Homens de pele tisnada pelo
sol de outras distâncias
E os olhos atravessados na
face
Como se mirassem tudo de
lado
Por dezembro nasceu no largo
uma árvore mais alta
Do que os pinheiros da Escandinávia
Sem pássaros nem ninhos
E crivada de luzinhas de
todas as cores
A piscarem de alto a baixo
Suportando milhares de
vistosos presentes
Reluzindo no brilho artificial
dos embrulhos
Feitos à pressa
Nos corredores dos centros
comerciais
À custa de uma fúria
consumista
Que endividou mais as
famílias
E lhes tornou ainda mais
incerto o futuro dos filhos
Longas e largas mesas se
puseram
Transbordando das mais
variadas iguarias
E dos mais finos doces
À sua volta tiniram os copos
Por onde correram encorpados
vinhos
E perfumados licores
Se trocaram saudações
E se formularam desejos
Enquanto se ignorava a
desumanidade
De que se enchem todos os
dias do ano
Não houve neves que
queimassem
Nem nos cumes dos alpes
Nem no cimo do kilimanjaro
Extinguiram-se da memória os
fogos que correm pelo amazonas
E que alimentam os desertos
australianos
Para que toda a gente fosse
feliz com o que não tinha
Para que muita outra gente
Em muitos outros locais
próximos
Continuasse feliz com tudo o
que não tem
Não houve uma palavra para
os sobreviventes de hiroshima
Nem para os deserdados do
norte de áfrica
São negras e felizes as
crianças a sul do sahara
Sem terem um espelho que
lhes mostre a imaculada brancura dos dentes
A ramela seca nos olhos
E o volume desproporcionado
do ventre
Sem um pão que lhes engane
as paredes do estômago
Uma vacina que as proteja da
doença
Ou um livro que as liberte
da ignorância
E esta é a solidariedade que
felizmente elas desconhecem
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