No 75º aniversário do dia D
Não teria sido necessário que
houvesse um dia d
E seis de junho de mil
novecentos e quarenta e quatro
Teria sido apenas um dia no
calendário
Talvez com um sol brilhante
varrendo a normandia
A anunciar a chegada do
verão próximo
Não teria havido desembarque
nenhum
E o mar estaria raso
estendendo a espuma branca pela praia
Aguardando a instalação dos
equipamentos para o veraneio
Ao longo daquela extensão de
alguns oitenta quilómetros
Não teriam sido necessários
milhares de aviões
Nem centenas de navios e milhares
de barcos
E menos ainda mais de cento
e cinquenta mil homens
Sem bolso para um mapa que
lhes indicasse o caminho
Nem fé num deus que lhes
prometesse o regresso a casa
E aos braços das suas jovens
e ávidas mulheres
Em vez disso serviram-lhes
um pequeno-almoço de madrugada
A que não faltaram nem as
compotas nem a substância
Como se fossem condenados
destinados ao cadafalso
E à morte nas águas frias e
revoltas do atlântico
Com força suficiente para
espalhar os mortos
Pela areia encharcada das
praias
Como banhistas temporãos que
não tivessem tempo de esperar pelo dia
Nem pelo sol do verão
próximo
Ninguém terá contado os
mortos um a um
Com o rigor que se exige à
contagem das moedas nas caixas registadoras
Mas ficou a certeza de que
foram muitos milhares
Tragados pelas águas frias
da madrugada
Ou triturados pelo gume
letal da metralha que toldou os anos em volta
Todo este tempo passado
sobre aquele dia
Poucos são já os velhos que
ainda sobrevivem
Curvados sob o peso das
medalhas e das honras
Que lhes penduraram ao peito
durante todos estes anos
E que apoiados a bengalas
vão às cerimónias oficiais
Como se fossem ser expostos no
museu do louvre
Nenhum deles sabendo se
ainda voltará
Para as solenidades do ano que
vem
Embora sabendo desde sempre
Que foram a guerra e a morte
que os trouxeram até aqui
Com medalhas penduradas ao
peito
E uma corrente de lágrimas
escorrendo-lhes por dentro
Como evidência de que a
guerra não tem vencedores definitivos
E de que a uma vida se opõe
sempre uma morte
De um qualquer semelhante a
nós
Que saiu na madrugada de um
dia d qualquer
Para nunca mais ter nos
olhos a ternura cândida dos filhos
Da guerra não ficaram apenas
os mortos nas praias da normandia
Mas ainda os milhões que se
enterraram pelos cemitérios da europa
Os que se cremaram nos
fornos dos campos de concentração
Os que a neve soterrou às
portas das cidades russas
Os que foram arrasados com
os edifícios de hiroshima e nagasáqui
E todos aqueles cujo
paradeiro nunca foi determinado
Para que as suas famílias se
pudessem conformar com a tragédia
E chorar a dúvida e o
infortúnio
E ficam ainda todos os que
vieram depois da normandia
Da koreia ao vietname
Do afeganistão às verdes
colinas de áfrica
Dos lugares sagrados da palestina
Aos lugares mais recônditos
das terras do fim do mundo
Das margens do mar adriático
Aos contrafortes dos planaltos
andinos
Ao som de poemas de amor e
de canções desesperadas
E de um extenso cortejo de fome
e de indignidade
A que falta a sorte simples
de um pão e de uma caneca de água para beber
E sobramos nós todos
vencidos e inúteis
Com mais de setenta e cinco
anos de caminho
Fabricando armas e bolsas de
valores
Fazendo guerras e fortunas
obscenas
E olhando para milhões de
vivos como se não existissem
Como se fossem mortos sem
nome
Como se não revirassem o
lixo à procura de restos putrefactos
Que lhes alimentem a ilusão
de sobreviverem e de estarem vivos
Num qualquer canto onde o
sol possa nascer numa manhã destas
[Duas referências, por gratidão e pelo uso de duas expressões: - a Ernest Hemingway, "As verdes colinas de África"; - a Pablo Neruda, "Vinte poemas de amor e uma canção desesperada".]
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