O Manel
Hoje encontrei o Manel a um
dos cantos da Praça do Marquês de Pombal. Ia eu, como sempre, à procura de um
café modesto, cabisbaixo, de olhos presos ao chão. Quando, em sentido
contrário, ele me perguntou em voz alta, se eu estava bom. Levantei os olhos do
chão e encarei-o, e as suas feições foram-me imediatamente familiares.
Rapidamente cheguei a ele e aos anos que me trouxeram até aqui, quando já não
encontro ninguém pela vida. Disse-lhe “estás com bom aspecto” e estava. Nem
andrajoso, nem roto, nem sujo, nem descuidado. Simples, humilde, mas limpo e
com bom aspecto. Um penso na parte posterior do pescoço, um quisto extraído,
coisa sem importância, vinha do tratamento. Ainda bem.
Aos anos que te não via
Manel, às vezes lembro-me, pergunto por ti ao meu filho mais velho, mas sabes
que ele se mudou, os anos passaram, hoje não anda pela baixa da cidade como
andava antigamente. Demoliram o prédio, a baixa é uma floresta de pensões e de
tabernas à espera de turistas jovens, de mochila às costas. E ele “já deve ter
alguns trinta e cinco anos”. E eu “vai fazer este mês quarenta e seis”. E ele “pois,
eu já tenho cinquenta e seis, e continuo por aí, por onde calha. O tempo não
para”.
Sabe, tenho a minha filha
ali adiante, nas freiras, está bem, anda na escola, no nono ou no décimo, nem
sei dizer. A escola é naquela rua, e aponta com o dedo. A mãe dela morreu, era
muito alcoólica e outras coisas, sabe como é, problemas. Não tem uma moedinha
para eu comer alguma coisa, é para comer. Para ti, Manel, tenho sempre uma
moedinha, e dei-lhe uma nota de cinco euros, sem nenhuma recomendação. É para
comer, insistiu, e não lhe respondi. Mas pensei, gasta-a naquilo que mais te
fizer falta, seja no que for. E penso que, pelo menos, a tísica a terás vencido
como um valente. Para além disso, o futuro a Deus pertence.
Nem te falei de mim, sabes
que há muito tempo não tenho nada para falar de mim a ninguém. Mas nem sabes
como foi bom encontrar-te e ver-te bem. A reconheceres-me, a cumprimentares-me,
a estenderes-me a mão. E revi-te com pouco mais de dez anos, miúdo de rua,
perdido na zona da baixa, na ilha onde sobrevivia toda a tua família. Entre a
miséria, a violência, o álcool e as drogas. Foi bom reencontrar-te, mesmo que
me tenhas deixado esta tristeza que trago nos olhos, mais funda e mais líquida,
meu sacana. E que Deus te acompanhe! Sempre, para que se não extinga esta
lágrima de conforto que trouxeste à minha manhã de sábado.
1 Comentários:
Há tantos anos, encontros e desencontros. Gostei de ler, as penas que a gente tem, gostei de vir aqui de novo!
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