2 de março de 2019

O Manel


Hoje encontrei o Manel a um dos cantos da Praça do Marquês de Pombal. Ia eu, como sempre, à procura de um café modesto, cabisbaixo, de olhos presos ao chão. Quando, em sentido contrário, ele me perguntou em voz alta, se eu estava bom. Levantei os olhos do chão e encarei-o, e as suas feições foram-me imediatamente familiares. Rapidamente cheguei a ele e aos anos que me trouxeram até aqui, quando já não encontro ninguém pela vida. Disse-lhe “estás com bom aspecto” e estava. Nem andrajoso, nem roto, nem sujo, nem descuidado. Simples, humilde, mas limpo e com bom aspecto. Um penso na parte posterior do pescoço, um quisto extraído, coisa sem importância, vinha do tratamento. Ainda bem.


Aos anos que te não via Manel, às vezes lembro-me, pergunto por ti ao meu filho mais velho, mas sabes que ele se mudou, os anos passaram, hoje não anda pela baixa da cidade como andava antigamente. Demoliram o prédio, a baixa é uma floresta de pensões e de tabernas à espera de turistas jovens, de mochila às costas. E ele “já deve ter alguns trinta e cinco anos”. E eu “vai fazer este mês quarenta e seis”. E ele “pois, eu já tenho cinquenta e seis, e continuo por aí, por onde calha. O tempo não para”.

Sabe, tenho a minha filha ali adiante, nas freiras, está bem, anda na escola, no nono ou no décimo, nem sei dizer. A escola é naquela rua, e aponta com o dedo. A mãe dela morreu, era muito alcoólica e outras coisas, sabe como é, problemas. Não tem uma moedinha para eu comer alguma coisa, é para comer. Para ti, Manel, tenho sempre uma moedinha, e dei-lhe uma nota de cinco euros, sem nenhuma recomendação. É para comer, insistiu, e não lhe respondi. Mas pensei, gasta-a naquilo que mais te fizer falta, seja no que for. E penso que, pelo menos, a tísica a terás vencido como um valente. Para além disso, o futuro a Deus pertence.

Nem te falei de mim, sabes que há muito tempo não tenho nada para falar de mim a ninguém. Mas nem sabes como foi bom encontrar-te e ver-te bem. A reconheceres-me, a cumprimentares-me, a estenderes-me a mão. E revi-te com pouco mais de dez anos, miúdo de rua, perdido na zona da baixa, na ilha onde sobrevivia toda a tua família. Entre a miséria, a violência, o álcool e as drogas. Foi bom reencontrar-te, mesmo que me tenhas deixado esta tristeza que trago nos olhos, mais funda e mais líquida, meu sacana. E que Deus te acompanhe! Sempre, para que se não extinga esta lágrima de conforto que trouxeste à minha manhã de sábado.

1 Comentários:

Às 6:54 da tarde , Blogger bettips disse...

Há tantos anos, encontros e desencontros. Gostei de ler, as penas que a gente tem, gostei de vir aqui de novo!

 

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