D. Quixote de la Mancha
Bem te digo Sancho, sendo Dezembro e Inverno, a noite não está nem muito fria, nem muito escura. A lua cheia já foi há alguns dias, devemos estar quase pelo quarto minguante. E as ruas estão desertas, não se vê vivalma, nada se move, não corre uma brisa. Mas esta espécie de luar encoberto deixa-nos ver a estrada, nada nos impede a caminhada, ninguém nos perturba. E apesar disso há uma luz difusa em cada casa, parece que toda a gente se mantém desperta, à roda da fogueira que se consome, como se não lhes desse o sono. Como se a chegada do frio da madrugada as não atormentasse, lhes não fosse desconfortável.
Eu sinto renovadas as forças e a esperança. Nós estamos no bom caminho, Sancho, nós vamos atingir os nossos objetivos. Valeu a pena porfiar, valeu a pena persistir. Não nos demoveram nem o riso, nem a chacota, nem a humilhação. Muito menos o desânimo e o cansaço. Sempre soubemos aquilo que perseguíamos. E será esta noite quieta de Dezembro que nos fará justiça, que imobilizará as velas pandas de todos os moinhos, que tirará o vento do cimo dos outeiros e a maldade do espírito dos homens. Cada um de nós terá o seu lugar na história. Eu, o indomável cavaleiro da esperança, valente e determinado. E tu, Sancho, meu fiel seguidor, que me não abandonaste em nenhum momento, nem quando o desânimo quase te derrubou do burro Rucio, alquebrado do caminho.
Já era
tempo, Sancho. Foi a isto que dediquei toda a minha vida e entreguei todo o meu
esforço. A abrir caminho, a imobilizar moinhos, a aquietar velas, a semear
serenidade e concórdia. Cavalgando este bravo Rocinante, ousado e destemido.
Nada nos deteve, nada nos deterá. Mais tarde, depois de Cervantes, alguém virá
para lembrar-nos que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Se não
fraquejarmos, nem nós, nem as montadas. A fé e a missa do galo nos salvarão,
antes que chegue o dia seguinte.
…
Depois,
o dia seguinte já será novamente de ruínas, povoado por moinhos ameaçadores por
todos os cantos do mundo, com todas as velas zunindo. Porque nunca houve nem haverá
ninguém como o homem, tão capaz de se matar para sua suprema felicidade. Sem
que, para tanto e para seu propósito, consiga extinguir a espécie. Nem no
Natal!
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