19 de abril de 2024

A primeira margem do rio

O pouco que sei aprendi-o com minha Mãe, tudo o que não sei aprendi sozinho. Aos oito anos eu só sabia que aquela era a primeira margem do rio, mas não sabia que o rio tinha mil quilómetros. Não sabia onde era a sua nascente. Mas sabia que iria desaguar no mar, sem saber onde era o mar ou, se calhar, também ainda não sabia. Sabia que o rio tinha uma jangada para o atravessar, que os homens, à força de varas compridas e de braços faziam encostar a um pequeno cais onde esperava uma camioneta Internacional K-11. Pôr a camioneta a bordo era uma tarefa de homens de ciência, demorava uma eternidade, até que minha Mãe me chamasse para o almoço. Para, talvez, me dar peixe frito e salada para comer e quinino para tomar, por causa do paludismo.

Logo depois de almoço a camioneta estava a bordo com precisão milimétrica, metade dos homens orientando de um lado, a outra metade orientando do outro, mais um bocadinho para a esquerda, menos um bocadinho para a direita, em frente devagarinho, para, em frente, volta a parar, isso. A cantilena muito lenta, muito arrastada, da qual, finalmente, sobressaía a voz poderosa de tenor: alto! Os homens subiam também todos a bordo, pegavam nas varas compridas, de pés descalços, os peitos negros exibindo o poder dos músculos e o preto da pele. Desamarravam as cordas grossas que prendiam a jangada aos troncos de árvore enterrados na terra seca. A jangada balançava suavemente ao sabor da corrente, parecia ameaçar ir rio abaixo, os homens fincavam as varas ao fundo do rio, o coro do esforço enchia o ar: huuuuumm. O balanço sustinha-se, a jangada contrariava a corrente, arrastava-se uma mão-travessa a subir o rio. A monotonia do coro durava uma hora, primeiro subindo o rio alguns cem metros, ao longo da margem. Depois empurrando a jangada para o outro lado, de uma outra margem tão distante que não existia, depois aproveitando e controlando a corrente para chegar ao destino.

Nesta primeira margem, com um pequeno resto de tábua, eu escavava a terra húmida sob a sombra larga das mangueiras. Cada punhado de terra trazia duas ou três minhocas contorcendo-se, tentando libertar-se da luz que lhes cegava os olhos que não viam. Eu aprontava o anzol na ponta de um fio com dois metros, preso a uma cana mal aparada de outros dois. Cravava-lhe na ponta a primeira minhoca, que se contorcia sempre, sem ai nem ui, esperneando, calada. Atirava o anzol ao rio e a rolha ficava a boiar, à superfície, acompanhando lentamente a corrente do rio e o movimento da jangada a meio dele. A meio do rio os homens continuavam com o seu esforço e o seu coro, arrastando a jangada e a cantiga, de troncos nus rebrilhando ao sol. Eu fixava o olhar no sol e na distância, preso à margem, à sombra das mangueiras, seguindo a rolha que flutuava e a jangada que carregava a camioneta. E começava a divisar um grande girassol que emergia no fundo do horizonte, ereto e poderoso, de tronco largo e folhas muito verdes, com uma corola tão brilhante e amarela como o sol escaldante do meio-dia. Era o sonho que se abria à volta do sol. Durante cinquenta anos o girassol cresceria sem rega e sem cuidados, fortalecendo-se nesta primeira margem do rio. O rio era o Kwanza, farto, largo, imenso e forte, grande de mil quilómetros, arrastando-se lentamente a caminho de Nossa Senhora da Muxima. Saravá!

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