Que havia de ser de mim
Que havia de ser de mim? Se o mundo inteiro desabasse num instante e eu amanhecesse perdido num dia baço de Dezembro, sem que houvesse calendário. Com o sol encostando-se à fatalidade de capricórnio, numa lenta manobra de inversão de marcha, regressando ao trópico de câncer. Coberto pela vasta escuridão da noite e pelo pesado silêncio do Kalahari e das finas areias em brasa que gelam pela madrugada, sem temperaturas com que pudessem ser medidas. Como achar o firmamento e cobri-lo de estrelas, alinhar constelações e dar um nome ao cruzeiro do sul. Tatear o planeta para lhe adivinhar a forma, senti-la redonda e andar para diante para chegar sempre ao mesmo lugar, sem ter consciência disso nem de nada. Saber da inutilidade de todos os lugares e de todos os momentos, sem noções de geografia e sem perceção do tempo, sem relógios nas paredes e sem sinos nas torres das igrejas, por não haver nem paredes, nem relógios, nem igrejas. Perder-me no vazio porque dele é todo o universo em que não há ainda pontos cardeais, nem sentido de orientação, nem vento norte. Como, assim, dar sentido à palavra descoberta, sem procura?
Se houvesse tempo teriam passado muitos anos e se houvesse calendário teria podido contá-los, mesmo que fosse pelos dedos e eles não chegassem. Assim não houve quem me pudesse dizer nada, quem me pudesse dar um palpite, quem me ajudasse. Ainda não havia jogos nem apostas e o teu nome repetidamente pronunciado perdia o sentido e a fonética, sem ritmo nem melodia. Não havia sequer vales, ou rios, ou montanhas onde eu pudesse acomodar um nome de terra pequena perto da fronteira. Não havia fronteiras nem terras que tivessem nomes ou a que estes se pudessem ajustar. Tudo ficava longe, do outro lado do mundo, onde apenas se chegava por engano, sem rota e sem rumo. Onde não era possível encontrar ninguém que não tivesse endereço ou não fosse portador de passaporte. Não desesperei por uma questão simples: o desespero era um estado de espírito ainda por catalogar. Nem sequer Freud tinha nascido para dar razão a muita coisa e as coisas não tinham um nome que já lhes tivesse sido atribuído.
Depois
abriu-se uma estreita nesga no vazio, entrou um débil raio de luz, e deram-lhe um
nome e dele ficou um pequeno rasto, quando houve noção do que era vazio. Uma
sombra muito curta, distante e frágil que foi abrindo um orifício de esperança
onde não cabia a ponta de uma agulha. E o conceito entrou-me pelos olhos como
se fosse um pássaro e tiniu a um canto da memória que nascia no fundo da cabeça.
E com a invenção da luz foi-se povoando o universo, foram-se dando nomes às
coisas, houve animais e árvores e mares e distâncias. Criaram-se deuses e alargou-se
o espaço. Inventou-se a roda e descobriu-se o fogo e com ele se sentiu que o
coração batia e que às vezes a fogueira aquecia os pés e acelerava o coração.
Houve distâncias, do longe se fez perto e dos passos se fez caminho. E do
caminho se fez procura e da procura nasceu a descoberta.
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