Sortilégio bissexto
Não
me lembro de naqueles anos ter tido mais de um par de sapatos. Quando o
desgaste já não justificava que levassem mais umas meias solas, em casa
diziam-me para passar no senhor Hermínio para tirar medidas. O senhor Hermínio
– um homem de quem toda a gente gostava e de quem tenho saudades – fazia-me
assentar o pé no chão, sobre um pedaço de papel de embrulho e, com um lápis,
desenhava-lhe o contorno, fazia medidas com uma fita métrica e tirava
apontamentos. Depois, não sei quanto tempo depois, entregava-me uns sapatos
novos, a brilhar com a graxa aplicada de fresco, que me incomodavam os
calcanhares enquanto os pés se não habituavam à novidade e ao novo feitio que a
forma desenhara.
Apesar disso, mesmo sendo pouco leitor de contos de fadas, por falta de fadas e de orçamento, eu acreditava no Menino Jesus. E em casa chegava a ter pena dele quando me sentava à lareira e via as cavacas de pinho seco crepitando na fogueira e a fuligem acumular-se, muito negra, pela chaminé acima, mesmo ao lado da panela de ferro fundido, com três pernas, que minha mãe mantinha sempre ao lado das brasas, cheia de água quente. Porque o imaginava descendo por ela abaixo, durante a madrugada, imaculadamente vestido de branco, carregando às costas o saco dos presentes, a fazer o seu trabalho de distribuição de roupas novas e, porventura, a deixar um ou outro brinquedo aos mais afortunados. Para, na manhã seguinte, lá estar ele na missa, nas mãos do senhor prior, de pés lavados, a oferecer-se ao beijo devoto dos fiéis. Aí, na missa, chegou ele a ser-me quase indiferente, por não atender aos meus desejos e deixar-me sempre vazio o sapato que na noite anterior, confiante, lhe deixara à espera, a um dos cantos da lareira. Sem motivo que o justificasse e que eu compreendesse. Tanto mais que eu me portava bem, não dava erros no ditado, sabia a tabuada, fazia os recados a minha mãe e era elogiado pela professora.
Com
os anos eu fui levando tareia pela vida fora, habituando-me a não acreditar nem
no Menino Jesus nem no Pai Natal, uma versão mais moderna, toda vestida de
vermelho, viajando num trenó – que nunca ninguém viu – puxado por renas ao
longo de paisagens geladas, desde a Lapónia – que parecia não figurar em mapa
nenhum – até ao trópico de Câncer ou mesmo até ao Equador, ali mesmo ao lado
das ilhas de São Tomé e Príncipe. Mas, à falta de lareira e da fogueira
crepitando na noite fria, continuei a formular-lhe pedidos em pensamento, até
saber o seu endereço de correio eletrónico e poder enviar-lhe uma mensagem
pessoal. Sim, sem admiração, porque o Menino Jesus também se modernizou e
aderiu às novas tecnologias. Frequenta centros comerciais, usa telemóvel, tem
conta de correio eletrónico e não cumpre horários. Até se atrasa com frequência.
E deve ver novelas e saber as notícias pela televisão, penso eu. Com o atraso,
acabou por me ligar apenas este ano, quando o mês de Janeiro já ia a meio, para
me falar no presente que não me deixou no sapato há mais de cinquenta anos.
Ainda nem sei bem se acredite, isto deve ser sortilégio do ano bissexto. Mas na
dúvida, mesmo assim, acho que no próximo Natal, reconciliado com ele, vou voltar
à missa do galo, a beijar-lhe o pezinho limpo e a fazer o sinal da cruz.
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