A chamada do Menino Jesus
Habituei-me a não ficar milionário com o sorteio do euromilhões nas noites de sexta-feira, apesar dos dez euros que possa ter investido em apostas. De forma que menos ainda o espero, a coberto de uma chamada anónima, que me possa chegar a qualquer momento, não sei de onde e que, por princípio, não atendo. E, mesmo que a chamada me chegue atrás de um número que não conste da minha curta lista de contactos, fico ainda mais hesitante do que receoso. Nunca imagino que pechincha me poderão vir oferecer, desde as férias de sonho nos antípodas, com tudo incluído, até aos eficazes e únicos produtos para o cabelo, capazes de fazer renascer na mais polida bola de bilhar a cabeleira que, aos vinte anos, teria o saudoso beatle John Lennon.
Era sexta-feira,
era meio da manhã e atendi a medo, procurando identificar o chamador. A resposta
recolheu-me o sorriso e agudizou-me o receio: o Menino Jesus. Entre a surpresa
e o espanto, tolheu-se-me a voz mas, apesar disso, fui capaz de perguntar-lhe o
nome do pai e o local de nascimento, para poder confirmar-lhe a identidade. Perguntas
simples para respostas simples, a que retorquiu de forma surpreendente: não
responderia a nada e, havendo perguntas, só a ele estaria reservada a
iniciativa de as fazer. Temi uma qualquer intromissão, uma usurpação do nome,
uma apropriação indevida de identidade. Sendo-se jovem e inexperiente nestas
matérias, não é por se ser filho de Deus que se fica imune à mentira e à
fraude. A ascendência e a linhagem, apesar de tudo, não colhem em muitas
situações. Mesmo que se usem programas de segurança e se conte com a superior
proteção divina. Não sei se consegui dizer-lho, mas creio que o tentei. Mas
senti que se calava e que, pelo menos, manifestava alguma preocupação e se
protegia atrás de um silêncio breve. O que fez com que a conversa terminasse
ali, entre a desconfiança e o receio. Depois, ainda voltou a ligar-me no dia
seguinte mas eu, não recomposto da surpresa e ainda desconfiado, não ousei sequer
arriscar e atender-lhe a chamada. O pai que fizesse o favor de o aconselhar e
de lhe indicar o caminho do diálogo, para que eu readquirisse a confiança
necessária para o atender.
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