Santa Engrácia te acolha tarde e devagar
“Leitor de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso tempo.
Aproxima-te
um pouco de nós e vê.”
[Eça de
Queirós, Uma Campanha Alegre]
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Não sou
mais do que um pobre homem da Póvoa de Varzim, que nem sequer nasceu em casa de
seus pais ou, sequer, de sua mãe. E que, menos de uma semana depois, foi a
batizar a Vila do Conde, a alguns quilómetros de distância, sem se saber o nome
da mulher que o parira. Portanto nascido irrelevante e anónimo. E assim fui
andando, aos tropeções pela vida e aos trambolhões pelo mundo. Sem esperar dele
mais do que a ignorância ou o desprezo.
Deu-me
guarida o jazigo familiar e amigo dos Condes de Resende onde fui deixado,
descansado e ao abandono. Até que interesses imobiliários me ameaçassem de
despejo e o favor de remotos descendentes me levassem para Santa Cruz do Douro,
onde já não me chegava ao nariz o perfume apetitoso das favas e da cozinha. Por
ali fiquei uns tempos, num rústico e bucólico sossego.
Agora,
finalmente, depois dos tribunais e das disputas, o estrelato e as parangonas
nos jornais. Sem que eu possa ressuscitar, passear-me pelo Chiado, vestir
Prada, eventualmente até adquirir a mansão de um ex-banqueiro falido na Quinta
da Marinha. Talvez que pelas madrugadas a Dona Amália me presenteie com a
tristeza de um fado. Ou que o senhor Eusébio me delicie com a magia dos seus
toques de cabeça. E eu arranje inspiração para glorificar num romance a
comunidade do condomínio privado do panteão.
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