É Natal
Há já muitos anos, nem eu já sei bem quantos, a sul do equador, não era nada disto. Não havia frio e da neve só se sabia dela pelos postais que chegavam do norte da Europa sem se acreditar muito que não pudesse derreter. Mesmo a luz era quase a mesma de todos os dias, baça e difusa, emergindo do candeeiro a petróleo pousado no peitoril da janela virada para a noite cerrada. A noite de Natal era um sacrifício, com a mesa farta e toda a gente sentada à sua volta, solene e circunspecta. A ementa não ajudava, com o bacalhau cozido importado da Noruega, como se já não houvesse carapau para secar no mar aberto de Porto Amboim. E o desperdício da batata cozida que podia aloirar-se no óleo sedutor e fervente, cortada aos palitos, na generosa frigideira pendurada por cima do fogão. Para mais, estava ainda por descobrir o fascínio da couve portuguesa, tão verde de frescura, tão tenra de folhas e de talos, aferventada em muita água e com lume forte, como só ela sabia fazer. Tão simples de fazer, tão difícil de conseguir fazer.
Depois, confortado o
estômago, as pálpebras iam cedendo ao avanço da noite e ao peso do sono. A casa
silenciava e o cachorro enroscava-se no seu canto. Às vezes um gato espreitava,
silencioso e desconfiado, a uma das portas da sala. Minha mãe ia ao quarto do
fundo buscar o alguidar onde a massa levedava há três horas e punha-o a seu
lado, sobre um banco pequeno, de quatro pernas e um furo no meio. Despejava açúcar
e canela num prato largo que punha sobre a mesa e empurrava-o para o meu lado.
Não dizia palavra, não era preciso, eu já sabia o que tinha de fazer. Havia de
enrolar na mistura cada filhós que, dourada, minha mãe retiraria da fritura e
deitaria sobre um papel grosso para absorver o excesso de azeite. Uma vez por
outra, ignorante e descuidado, uma ou outra iria ser submetida ao teste da
prova. Seria bom sinal que me mantivesse calado, que nada dissesse. Como sempre
e como em tudo na vida, só se reclama do que está mal. Nunca se enaltece o que
está bem, o que merece elogio.
Nem era mais longa a noite, era só mais escura. O sol romperia o horizonte à mesma hora, indiferente às festividades e ao dia santo. Lá teria de me erguer à mesma hora de sempre, tirar a ramela dos olhos, vestir-me de camisa irrepreensivelmente branca, corada ao sol, calções de caqui e meias altas, sapatos a brilhar do esmerado brilho da graxa. Muito bem penteado, de risco ao lado, desenhado com a precisão do pente, rejeitando no cabelo levemente ondulado mais do que a água lisa da torneira. Depois talvez quinze minutos até à igreja do bairro, para a solenidade da missa e para a novidade do presépio, tão enfeitado de casinhas e de musgo, o menino muito pequenino deitado nas palhinhas como se tivesse de facto acabado de nascer. Haveria de suportar sem lamento a dor das areias sobre os joelhos de cada vez que tivesse de me ajoelhar e creio que terá sido isso a afastar-me da missa ou a deixar de usar calções. Depois haveria de vir o senhor padre, cujo nome retenho num grato canto da memória, com o menino na mão esquerda e um pequeno lenço na mão direita, a dar-nos a beijar o pé do Menino. E a passar-lhe o lenço por cima antes de o dar a beijar à pessoa seguinte, como se o desinfetasse.



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