27 de fevereiro de 2004

A frouxa tourada mensal de S. Bento

Longe vão os restos mortais dos portugueses de excepção que animaram as conferências do casino. Sobravam-lhes, nessa época, a inteligência acutilante, a ironia devastadora e o superior desdém com que tratavam a classe dirigente que se ia sucedendo no poder. Depois deles ficou o vazio, árido como o deserto em que nem a areia se dá. A glória pátria conservou-se, apesar de tudo, na inutilidade da classe política que se eternizou. Naquele tempo abandonavam-se as colónias e desdenhava-se delas. Para as colonizar enviavam-se porões carregados de facínoras, a regenerarem-se e a difundirem a fé. Foram-no fazendo o melhor que sabiam, juntaram-se a submissas indígenas, foram pais de sucessivas gerações de mulatos. A metrópole teimava em valsar nos salões, ao som já distorcido de velhos instrumentos e sob o metal oxidado dos candelabros. As jóias tinham sido depositadas nas casas de prego sem que houvesse dinheiro para o resgate. Já nem a agiotagem corria o risco, aristocrático e incomensurável.

De permeio o país julgou-se governado por um celibatário inteligente, beato e tonto. Que julgava fazê-lo por inspiração divina e que se sentia no dever de exorcizar os infiéis usando os serviços dos mais díspares mandatários. Nunca no percurso histórico de nenhum país, a vida de um homem teve expressão que lhe sobrevivesse por longo futuro. E assim foi também com este. Não teve a memória que dele ficou tempo suficiente para ir à fonte e lavar as mãos do sangue que deixara secar-lhe entre os dedos.

Hoje o país nem pensa que é governado seja por quem for: pura e simplesmente sabe que o não é. De quatro em quatro anos, na melhor das hipóteses, gastam uma fortuna para que uma trupe de eleitores vá fazer uma cruz num quadrado, dobrar um papel em quatro e metê-lo, à força, numa caixa de aglomerado. Saem dali, eleitos, 230 privilegiados, quase sempre os mesmos, que vão passar o tempo a discutir o sexo dos anjos e dos netos que já emprenham as filhas e as noras. Quando a ciência tem hoje meios fáceis e expeditos de saber se é menino ou menina.

À falta das conferências, renovou-se a tourada. Já não só de Verão, às quintas-feiras, transmitidas em directo nos serões da RTP. Já não há pachorra para assistir à barbárie de carregar sobre touros indefesos, espetar-lhes ferros afiados no dorso e, depois de sangrados, retirá-los da arena para abate e venda como carne para bife nos supermercados. Não! A tourada, arrogante, convencida e inútil, transferiu-se para o hemiciclo de S. Bento. Onde, de mês a mês, comparece o governo como quem presta contas à mulher a quem, ao modo antigo, nunca sequer deu mesada para o governo da casa.

Por incrível que pareça, o que se discute? O sexo dos anjos, a perda das colónias e o défice do orçamento. As discussões arrastam-se, monótonas e tristes, entre os quase três e os cerca de cinco por cento. O menos bem que o governo consegue - porque o governo nunca consegue nada mal! - é sempre culpa do passado, que não foi dele, mas da oposição. A oposição acha sempre que o último bem que o país teve foi o último governo que ela própria liderou. Não há ideias, nem imaginação, nem idoneidade, para além daquelas. Há oportunismo! Tão grosseiro, tão descarado, tão demagógico que o eleitor se sente muito cumprimentado, como atrasado mental que dele, sistematicamente, vão fazendo. Cada vez mais.

Ainda esta manhã o primeiro ministro acusava uma deputada da oposição, - cuja beleza física enaltecia, o maganão! - de nunca ter ido a eleições. O que deixa a suspeita, grave e intolerável, de haver deputados que ocuparam os seus lugares na bancada servindo-se de jagunços. Mais: ria-se o mesmo assim um bocado a despropósito, porque é primeiro-ministro e porque tem um curso superior, de políticos a que chamava comunistas envergonhados. E gargalhava, quase alarvemente. De facto é raro que haja quem possa apregoar a constância e a fidelidade ideológica do Dr Barroso. A não ser no interior do seu partido!

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