A minha pátria é a língua portuguesa
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
[Fernando Pessoa, representado pelo heterónimo Bernardo Soares, in "Livro do Desassossego"].
O país tem com a língua portuguesa o mesmo tipo de relação que mantém com a matemática: incestuosa e trágica. O cidadão crava-lhe violentamente os polegares no pescoço enquanto a viola. A culpa profunda, todavia, não lhe pertence. É coisa que já vem de longe e parece-se, por vezes, com o tipo de campanha que os candidatos às autarquias fazem em véspera de eleições junto dos lares de terceira idade. Visitam-nos, distribuem pastéis de nata e recolhem o voto. Consumada a eleição e a posse o ideal seria poderem encostar os velhos a uma parede, em cadeiras de rodas, usando muletas e bengalas, tronco curvado em vénias à vida e fuzilá-los.
O país faz luxo na vulgaridade com que evidencia os seus conhecimentos de inglês. Fala hoje com o mesmo à vontade e a mesma propriedade de "call centers" com que antigamente se falava de "off side", embora nessa época toda a gente dissesse guarda-redes e apenas os literatos se referissem ao "goal keeper". Mas, apesar disso, envia responsáveis para Paris que não sabem francês e que precisam de intérprete. Nem lhe passa pela cabeça que isso possa ser ridículo, quanto mais cabotino. Apenas porque o país de há muito perdeu a noção de ridículo e não sabe o que seja isso de cabotino.
Do mesmo modo, o país não fala português. Limita-se a linguarejar um híbrido portinhol ou françoguês. Livre quanto baste, sem regras e sem rigor. E o uso da língua é um exercício de ortografia, de sintaxe, de domínio do vocabulário e, essencialmente, de rigor. Mas, quanto a rigor, estamos infelizmente conversados. O senhor Fernando Pessa bem prolongou a sua permanência entre nós, até aos cem anos. Não conseguiu com isso evitar as asneiras do José Rodrigues dos Santos, apenas se limitou a vê-lo transformar-se em professor universitário. Mesmo a doutora Edite Estrela, que abandonou Carrazeda de Ansiães para se furtar às influências do mirandês, sucumbiu trucidada nas intenções e na Câmara de Sintra. Decidiu-se pela emigração porque, ao que parece, em Estrasburgo se reconhecem - e remuneram - melhor o poliglotismo e os penteados.
Não pode, deste modo, o país esperar que as suas escolas confiram licenciaturas, mestrados e doutoramentos em engenharia mecânica e a população resultante, academicamente qualificada, saiba fazer uso correcto da língua depois de não ter sido obrigada a nenhuma leitura que não fosse a do tio Patinhas e a dos irmãos Metralha. Talvez por essa razão alguns dos mais consagrados escritores portugueses tenham queimado as pestanas a estudar ciências naturais e biologia para dar consultas e usar estetoscópio ao pescoço. Talvez por isso também muito boa gente com a pasta cheia de pós-graduações em comunicação social pudesse render muito mais e muito melhor a fazer transplantes de rins e a engessar canelas.
O país faz luxo na vulgaridade com que evidencia os seus conhecimentos de inglês. Fala hoje com o mesmo à vontade e a mesma propriedade de "call centers" com que antigamente se falava de "off side", embora nessa época toda a gente dissesse guarda-redes e apenas os literatos se referissem ao "goal keeper". Mas, apesar disso, envia responsáveis para Paris que não sabem francês e que precisam de intérprete. Nem lhe passa pela cabeça que isso possa ser ridículo, quanto mais cabotino. Apenas porque o país de há muito perdeu a noção de ridículo e não sabe o que seja isso de cabotino.
Do mesmo modo, o país não fala português. Limita-se a linguarejar um híbrido portinhol ou françoguês. Livre quanto baste, sem regras e sem rigor. E o uso da língua é um exercício de ortografia, de sintaxe, de domínio do vocabulário e, essencialmente, de rigor. Mas, quanto a rigor, estamos infelizmente conversados. O senhor Fernando Pessa bem prolongou a sua permanência entre nós, até aos cem anos. Não conseguiu com isso evitar as asneiras do José Rodrigues dos Santos, apenas se limitou a vê-lo transformar-se em professor universitário. Mesmo a doutora Edite Estrela, que abandonou Carrazeda de Ansiães para se furtar às influências do mirandês, sucumbiu trucidada nas intenções e na Câmara de Sintra. Decidiu-se pela emigração porque, ao que parece, em Estrasburgo se reconhecem - e remuneram - melhor o poliglotismo e os penteados.
Não pode, deste modo, o país esperar que as suas escolas confiram licenciaturas, mestrados e doutoramentos em engenharia mecânica e a população resultante, academicamente qualificada, saiba fazer uso correcto da língua depois de não ter sido obrigada a nenhuma leitura que não fosse a do tio Patinhas e a dos irmãos Metralha. Talvez por essa razão alguns dos mais consagrados escritores portugueses tenham queimado as pestanas a estudar ciências naturais e biologia para dar consultas e usar estetoscópio ao pescoço. Talvez por isso também muito boa gente com a pasta cheia de pós-graduações em comunicação social pudesse render muito mais e muito melhor a fazer transplantes de rins e a engessar canelas.
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial