3 de abril de 2004

A Justiça de secretaria

Em Portugal é norma que todas as questões sejam discutidas e resolvidas à roda de uma mesa, no silêncio das paredes dos gabinetes, revestidas a madeiras exóticas, apesar da crise. Para não variar, é assim com tudo. Com o futebol a que alguns persistem em chamar desporto e outros, como o omnipresente presidente da Liga, indústria. Sem esclarecer para fabrico de que bens mas, um dia destes, há-de chamar fábrica ao estádio do Bessa que, aliás, as já teve mesmo ao lado.

Para plano irrelevante é remetida toda a equipa técnica e a sua semana de trabalho, a definir estratégias, a optar por tácticas para vencer, a aprimorar os inimagináveis lances de bola parada. E, ainda, o galope estonteante dos futebolistas, - a quem não sabemos se ainda chamar desportistas, se já operários! - o seu esforço, o seu muito suor e a perda de alguns três quilos de peso em hora e meia de jogo. Quando os resultados não são tão bons como se pretendia, despede-se o treinador. Como se fosse ele o diabo em figura de gente, a infernizar tudo e a perder os jogos.

Nunca, até hoje, se mandou embora um dirigente ou se questionou a sua longa e comprovada competência. Todos, graças a Deus, são bons em tudo, desde que prometam com o descaramento desconchavo dos políticos antes de eleições. E vêm sempre dos mais variados sectores, desde militares falhados em tempos de paz até construtores civis especulando no imobiliário. Desde vendedores de pneus a importadores de cafés e consumidores compulsivos de bebidas importadas da Escócia e do Cartaxo.

A Justiça, de que agora se fala muito para não dizer nada, não poderia fugir à regra. E a justiça resume-se ao processo da Casa Pia. Com a mesma morbidez com que as fiéis leitoras da revista Maria se perguntam se ver filmes eróticos as pode engravidar ou se o embaixador Ritto mija ainda com jacto forte ou se já lhe vai faltando ânimo para isso. Com a finalidade de acompanhar tudo, em directo, as televisões põem equipas à porta da penitenciária e da residência para relatarem que o mesmo não disse uma palavra à saída de um lado nem à chegada ao outro. Pelo caminho o automóvel que o transportava ultrapassou a velocidade máxima permitida três vezes, consumou seis manobras perigosas e acabou a estacionar em transgressão, em cima do passeio.

Nos inquéritos os advogados sabem tudo, sobre todas as matérias. Como os dirigentes desportivos e como os ministros. E, naturalmente, põem em dúvida a competência e a capacidade profissional de quem foi solicitado a intervir na área em que trabalha e em que, presumivelmente, terá alguns conhecimentos. Foi assim que uma técnica do Instituto de Medicina Legal foi interrogada durante horas e viu posta em causa a sua capacidade profissional. Por se tratar de uma psicóloga com apenas três anos de experiência e a trabalhar em regime de avença há dois anos, mais concretamente na área genérica da psiquiatria forense e sem nunca ter trabalhado com vítimas de abusos sexuais. Foram outros psicólogos a contestar-lhe a competência? Não! Foram advogados, como poderiam ter sido sacerdotes ou militares da Guarda.

E os senhores advogados, têm todos mais de três anos de experiência? Sem trabalharem em regime de avença? Em escritório que apenas lhes pertence, sem sociedades? Têm experiência de governo ou de parlamento? Não trabalham em regime de avença para ninguém? E estão seguramente fartos de trabalhar com questões de abuso sexual? Se assim não for, alguém pode pôr-lhes em causa as muitas e variadas competências. É melhor que se acautelem!

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