6 de agosto de 2004

A reviravolta na justiça

Banca de jogo do ministério da justiçaFoi preciso que o governo se tirasse de cuidados, calçasse as tamanquinhas e fosse ao Porto - mais precisamente, à Rua de José Falcão - recrutar um ministro da justiça para que este descobrisse a verdadeira vocação do ministério: jogar na bolsa. Como todas as decisões inovadoras também esta, desde logo, desencadeou reacções contraditórias. Chegados do remanso bucólico da Quinta das Lágrimas ainda se ouvem os aplausos silenciosos do bastonário da ordem. Algures da tranquilidade tépida das águas do mar Egeu chega também, rápida e desabrida, a silenciosa recrimanção da ex-ministra, estendida ao sol na proa de um pequeno iate de família. De permeio, como habituais desmancha-prazeres, berram os funcionários enquanto manuseiam volumosos processos atados com cordeis e roídos pela traça. Mas, à cautela e para o que der e vier, vão dissimulando no meio das folhas amarelecidas pelo tempo alguns boletins do totoloto.

Doravante não haverá motivos para reclamar da justiça e condenar-lhe a atávica morosidade ou o excessivo zelo da prisão preventiva. Velhinhas divorciadas, aguardando a fixação de pensões de alimentos e arrimadas a previdentes bengalas, poderão entreter-se na sala de slot machines de que os tribunais de família passarão a dispôr enquanto um estagiário envelhece numa arrecadação à procura da sentença. Os menores, mais práticos e menos exigentes, poderão sentar-se pelo cimento dos corredores, tirando uma passa e jogando à moedinha enquanto aguardam pelo despacho de reinserção e pelo carro que os transporte.

Mais exigentes, os facínoras que esperam pelo juiz, pelo julgamento e por penas de prisão maior, terão salas de jogo nos tribunais criminais dispersos pelo país. Poderão aí jogar a dinheiro conjuntamente com advogados, testemunhas e magistrados, mas deverão ser todos portadores de licença de admissão e não serão toleradas dívidas de jogo. Para processo já bastará aquele com que se confrontam e não permitirão os tribunais que, sob telha sua, nasçam mais questões com incobráveis cujo monopólio, como se sabe, pertence às empresas operadoras de comunicações móveis.

Mais tranquilas apesar do afã do expediente, as conservatórias e os notários diversificarão, com vista à privatização próxima, o leque das suas actividades. Criarão salas de estar, utilizando mobiliário de estilo moderno e fabrico espanhol - de que outro lado também poderia ser? - onde, confortavelmente, se poderá aguardar até à hora de encerramento das repartições, ver filmes indianos nos diversos canais da tevê cabo e jogar socialmente a canasta. O fornecimento do chá e dos bolinhos será garantido por um complicado e eficiente sistema de outsourcing para que se assegure o contínuo funcionamento da cadeia de abastecimento e nunca faltem a canela para o pastel de nata e o adoçante de reduzidas calorias para as senhoras que a gulodice privou miseravelmente de cintura.


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