21 de dezembro de 2004

Menino Jesus

Sento-me aqui no alto da arriba, sobre uma pedra solta que me magoa mas me não foge. Olhando o mar bravio que vai mais longe dos que os olhos com que vejo. Cercado por ventos assustados que varrem as cinzas que ainda restam dos incêndios e agitam frágeis troncos secos de cardos que me picam os pés quando caminho. Para além disto o dia está calmo, não se vê vivalma, o céu cinzento não ameaça chuva nem sol. Ouvi de caminho que hoje começa o inverno, que este é o dia mais pequeno do ano, que nos ficam pela frente três meses de maiores sofrimentos e de mais curtas esperanças.

Queria escrever-te uma carta, sem usar papel nem esferográfica, para ter a certeza de que seguia limpa e que não dava erros. Mas não tenho nem dinheiro para o selo nem sei em que código postal te podem encontrar. É inútil que te fale de viva voz, por mais que grite. Não sei para que lado o faça e este mar, e estes ventos, não deixam que alguém grite mais alto e mais longe do que eles.

Não te quero pedir nada, que sei que aos pobres nem sequer respondes. Ou porque te não preocupas com eles ou porque vivem em casebres sem números nas portas e sem carteiros que lhes percorram os caminhos. Mas queria dizer-te que gostava de ter umas sapatilhas que pudesse calçar com um par de meias, das que se compram na feira, que me protegessem os pés do frio, das pedras e do tojo. De poder ter uma camisa e umas calças novas e lavadas, que pudesse vestir para ir à igreja na noite de Natal, para espreitar a missa do galo. Não ter vergonha do meu aspecto pobre e sujo, não temer que me escorraçassem, poder espreitar de longe os pezinhos limpos em que te depositam beijos breves e falsos como Judas.

Mas não acredito que existas e ainda menos que chegues acompanhando o inverno. Não posso crer que me possas desamparar ao frio, descalço e esfarrapado, procurando alimento nas lixeiras e correndo a dar alguma côdea seca que encontre ao meu irmão mais novo. Preso à enxerga, tomado de uma tosse convulsa que apaga a lamparina de petróleo, as moscas devorando-lhe os olhos, as lágrimas de fome caindo-lhe da boca. Nem o teu pai, Senhor Deus, omnisciente, omnipresente e todo-poderoso se preocupa connosco. Alguém ia preocupar-se?

2 Comentários:

Às 12:33 da tarde , Blogger Carlos Araújo Alves disse...

Belo texto, Luís Filipe, mas parmita-me que lhe diga, um texto de quem, pleno de fé, diz não crer.
Abraço

 
Às 10:11 da tarde , Blogger mfc disse...

Se existisse.. este mundo seria diferente!
Gostava de acreditar nesse Deus...

 

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