20 de dezembro de 2004

Co-incineração



Seria chover no molhado repetir que o espectáculo é confrangedor. Porque, de facto, assim é de há muito, sem que nada ameace melhorar seja o que for. O programa de desgoverno do Dr. José Barroso foi salientar os defeitos do desgoverno anterior e a fuga, sem música e sem compasso, do Eng. Guterres. Garantido melhor emprego, não hesitou e fez o mesmo. Não deu nenhum pré-aviso, entregou a disciplina da turma aos cuidados de um novato sem experiência e sem vocação, suprimiu o Durão do apelido, confirmou que estavam prontas as obras do gabinete e rumou a Bruxelas. Onde não paga impostos e se pode dar ao luxo de ignorar a família real, os valões e os flamengos.

O seu sucessor legitimou a sua promoção numa reunião de moradores, num sábado à noite, tendo-se confrontado com algumas vozes discordantes que não reconheciam ao sacristão conhecimentos para se responsabilizar pela celebração e pelas orações do dia a dia. Cedo os factos vieram a dar razão a estes atiradores furtivos, inofensivos por utilizarem velhas carabinas de repetição que tinham feito grandes estragos na conquista do oeste e revelado ainda algum préstimo nas forças que se confrontaram na segunda guerra mundial. O novo mordomo ajustou aos tempos que passavam a sua prática política e manteve a crítica feroz ao desgoverno que antecedera o do novo rei do Boulevard Charles Magne. Ao mesmo tempo que, já agora, também criticava este por ter abandonado a igreja no exacto momento em que era dada a comunhão. Enquanto, por vocação, se apresentava mais prontamente ao desfile de raparigas despidas de trapos, se deixava adormecer depois de qualquer almoço mesmo frugal e trocava a sensaboria de uma tomada de posse de humildes ajudantes de ministros pelo fausto de um casamento de sociedade, com mariscos importados de Moçambique e champanhes genuínos da região de Reims.

Depois de muito ponderar, de gastar uma larga fatia do orçamento em repetidas consultas à cientista Maya e de encomendar relatórios a uma rapariga da Malveira da Serra que escreve livros com títulos em inglês, o Dr. Sampaio passou-se à hora do jantar, enquanto saboreava a sopa de alho francês e deu um violento murro na mesa. A D. Maria José assustou-se, a governanta escapou-se para um canto da cozinha, a sopa entornou-se e três copos de cristal de Alcobaça, pertencentes ao erário público, ficaram feitos em cortantes e perigosos cacos. No dia seguinte, com ar grave, falou ao país, omitiu a sua conhecida inclinação sportinguista, criticou as regras do fora de jogo e deu um sopapo final e fatal no Dr. Santana que já contraíra empréstimos com prestações a pagar até 2014.

Resolveu dar o seu contributo à quadra carnavalesca, prolongando-a até ao dia 20 de Fevereiro, prescindindo da quarta-feira de cinzas e instituindo, com a originalidade a que o país já se habituou, a segunda-feira de cinzas para o dia 21, início da Quaresma. Os foliões começaram a surgir em público, a marcar os locais e as datas dos corsos, a anunciar as fantasias. Mantém-se calado o supremo educador da sociedade do Mercado dos Lavradores mas já se sabe quem vai encabeçar os desfiles e, como nas marchas populares, quem vai ganhar como se fosse o Bairro da Bica. Nessa perspectiva começou o combate, todo feito de fantochada como se fosse na luta livre, com corpos enfezados armados em Tarzans Tabordas, a saltar por cima das cordas e a arremessar os adversários para fora do ringue.

Como projecto para o país e para os anémicos portugueses, o candidato ao desgoverno futuro repete que o desgoverno presente é uma vergonha e que o anterior também já o tinha sido. A anemia dos portugueses começa a desaparecer ao ritmo da retoma económica trinta vezes anunciada pelo Dr. Santana e quarenta desmentida pelo eterno candidato à direcção do Benfica. O demissionário desgoverno de gestão repete que o candidato é herdeiro de um fugitivo e de várias hortas na cova das beiras e que não será nem com a agricultura nem com a fuga com o centenário país previne os sismos e recupera o centro histórico das cidades.

Até que, original, o candidato ao desgoverno futuro se passa dos pirolitos e assevera que vai co-incinerar tudo como ameaçou fazer no desgoverno do primeiro fugitivo, desde lixos a pneus usados, opositores e botas de elástico. Ganhou inusitada dimensão o programa de desgoverno que ambos defendem, a par com a má língua como naquela quinta em que habita sangue azul e extracto de salsaparrilha. Reciprocamente dizem mal um do outro. Para além disso um promove o co-icineração, o outro não. O país comove-se e tranquiliza-se. Um promete fazê-lo arder em altos fornos, o outro em lume brando. Com uma certeza: pelo que cada um diz do outro, nenhum deles presta. As vendas de Prozac prometem disparar. O pior é o poder de compra!

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