Manuel da Fonseca morreu há 20 anos
Não
conheci pessoalmente Manuel da Fonseca, e tenho muita pena. Soube dele através
de um muito conhecido conto seu, “O fogo e as cinzas” e por intermédio de um
homem muito culto e muito bom, chamado Rosado Ferreira. Que sei ser natural de
Lisboa e de quem nunca mais soube nada, desde o início da década de setenta do século passado. Não sei sequer
se é vivo, o que eu estimaria muito.
Manuel
da Fonseca deixou-me definitivamente gravadas no cérebro algumas frases curtas
e densas, que nunca nada apagará. Revejo-me hoje na minha primeira visita a
Santiago do Cacém, onde nasceu e viveu grande parte da sua vida. Uma primeira
olhadela pelo largo em frente à Câmara e a associar as coisas: aquele era o
largo que antigamente fora o centro do mundo. Pessoa amiga me diria mais tarde
que não, que o largo não era aquele. Mas poderia ter sido...
Gostei
de ver como há dois anos Vila Franca de Xira celebrou o centenário de Alves
Redol e lhe associou Manuel da Fonseca, figura incontornável do neorrealismo.
As terras mais pequenas respeitam as suas personalidades, as grandes
ignoram-nas e esquecem-nas. Como gosto, ainda hoje, de voltar a Santiago do
Cacém, subir à colina onde é o cemitério e ir direito ao canto onde uma lage
cobre Manuel da Fonseca e quedar-me ali perfilado, num silêncio respeitoso,
repetindo sozinho que “Valgato é terra ruim”. A frase com que ele abre
“Campaniça”, um conto integrado no livro Aldeia Nova. O fascínio é meu, mas
esta pequenina amostra de prosa é das coisas mais belas que me foi dado ler em
língua portuguesa. Não resisto a deixá-la aqui e a esperar que toda a obra do
autor seja reeditada rapidamente.
Valgato
é terra ruim.
Fica
no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é
terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca
sem fim, que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no
fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu
parado.
Valgato
é uma terra triste.
Saem
os homens para o trabalho ainda a manhã vem do outro lado do mundo. Levam
enxadas e foices e conhecem todos os trilhos, entre o mato, com estevas que são
mais altas que duas vezes o tamanho do mais alto dos homens de Valgato. Tanto
conhecem os caminhos que vão, sem desvio nem engano, até às herdades que ficam
a léguas de distância, ainda com o sono e o escuro da noite fechando -lhes os
olhos.
Não
é de admirar. Zé Tarrinha tem uma mula que caiu num barranco de piteiras e
vazou os dois olhos. Pois a mula nunca erra a casa e vai sozinha à fonte. Não é
de admirar que os homens saiam ainda com o escuro da noite, e com o sono, e vão
sem desvio ou engano até às herdades.
O
Venta Larga, quando se fala que alguém se perdeu no caminho, diz sempre:
–
A gente não precisa senão de saber onde põe os pés. O mais é cá disto… – funga
com ruído e, alargando as narinas, aponta o nariz – … o mais é cá do cheiro.
Por
isso lhe chamam o Venta Larga.
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