11 de março de 2013

Manuel da Fonseca morreu há 20 anos


Não conheci pessoalmente Manuel da Fonseca, e tenho muita pena. Soube dele através de um muito conhecido conto seu, “O fogo e as cinzas” e por intermédio de um homem muito culto e muito bom, chamado Rosado Ferreira. Que sei ser natural de Lisboa e de quem nunca mais soube nada, desde o início da década  de setenta do século passado. Não sei sequer se é vivo, o que eu estimaria muito.


Manuel da Fonseca deixou-me definitivamente gravadas no cérebro algumas frases curtas e densas, que nunca nada apagará. Revejo-me hoje na minha primeira visita a Santiago do Cacém, onde nasceu e viveu grande parte da sua vida. Uma primeira olhadela pelo largo em frente à Câmara e a associar as coisas: aquele era o largo que antigamente fora o centro do mundo. Pessoa amiga me diria mais tarde que não, que o largo não era aquele. Mas poderia ter sido...

Gostei de ver como há dois anos Vila Franca de Xira celebrou o centenário de Alves Redol e lhe associou Manuel da Fonseca, figura incontornável do neorrealismo. As terras mais pequenas respeitam as suas personalidades, as grandes ignoram-nas e esquecem-nas. Como gosto, ainda hoje, de voltar a Santiago do Cacém, subir à colina onde é o cemitério e ir direito ao canto onde uma lage cobre Manuel da Fonseca e quedar-me ali perfilado, num silêncio respeitoso, repetindo sozinho que “Valgato é terra ruim”. A frase com que ele abre “Campaniça”, um conto integrado no livro Aldeia Nova. O fascínio é meu, mas esta pequenina amostra de prosa é das coisas mais belas que me foi dado ler em língua portuguesa. Não resisto a deixá-la aqui e a esperar que toda a obra do autor seja reeditada rapidamente.

Valgato é terra ruim.

Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim, que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.

Valgato é uma terra triste.

Saem os homens para o trabalho ainda a manhã vem do outro lado do mundo. Levam enxadas e foices e conhecem todos os trilhos, entre o mato, com estevas que são mais altas que duas vezes o tamanho do mais alto dos homens de Valgato. Tanto conhecem os caminhos que vão, sem desvio nem engano, até às herdades que ficam a léguas de distância, ainda com o sono e o escuro da noite fechando -lhes os olhos.

Não é de admirar. Zé Tarrinha tem uma mula que caiu num barranco de piteiras e vazou os dois olhos. Pois a mula nunca erra a casa e vai sozinha à fonte. Não é de admirar que os homens saiam ainda com o escuro da noite, e com o sono, e vão sem desvio ou engano até às herdades.

O Venta Larga, quando se fala que alguém se perdeu no caminho, diz sempre:

– A gente não precisa senão de saber onde põe os pés. O mais é cá disto… – funga com ruído e, alargando as narinas, aponta o nariz – … o mais é cá do cheiro.

Por isso lhe chamam o Venta Larga.

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