Domingo de Páscoa
O menino subiu as escadas a
correr até ao segundo andar, quase tropeçando nos degraus, aproveitou o facto
da porta estar apenas encostada e foi apressadamente ter com a mãe que estava
na cozinha a tratar do almoço. A mãe tinha o aspecto bonito e doce que têm
todas as mães, usava uma leve camisola de algodão, de um cor-de-rosa fresco e
esbatido, e tinha um avental que lhe protegia a elegância esguia das pernas e o
asseio engomado das calças justas.
E o menino disse, gaguejando
com a excitação:
- Mãe, o Cristo está lá em
baixo, à entrada da porta.
A mãe olhou-o de soslaio,
com aquele sorriso amarelo e doce que têm todas as mães, e retorquiu, tranquila:
- Vai deixar as sapatilhas
do lado de fora da porta, vira as calças do avesso, lava as mãos com muito
sabão e vai pensando em te sentares à mesa para comeres a sopa de abóbora. E eu
já vou ver se Jesus Cristo abriu a porta da igreja e fugiu da quarentena, como
mandam o bispo e o governo, e anda aí pelas ruas desertas de sinetas e de
amêndoas, a assomar a cada esquina.
O menino baixou o olhar
triste e contrariado e, a passo lento e curto, foi ao cumprimento das ordens da
mãe. Esta passou as mãos pelos cabelos que lhe caíam sobre os ombros e
dirigiu-se a uma das janelas que davam para a rua onde a calçada de granito
brilhava ao sol do meio dia de abril. Para seu espanto, Jesus Cristo estava do
lado de fora, pregado a uma cruz alta, de ferro, que chegava à altura do
segundo andar, esquálido de ferrugem e magro de quarentena. Ninguém o
acompanhava, nem o padre metido no seu hábito branco, com a barriga proeminente
empurrando o caminho, nem o sacristão agitando a sineta e carregando um saco de
plástico com a marca de um supermercado, pronto a receber as oferendas – sempre
em dinheiro, porque Jesus Cristo não usa multibanco – e a abrir-se para deixar
em cada casa um pequeno pacotinho de amêndoas baratas para as crianças.
A senhora ruborizou-se, sem
jeito limpou as mãos às calças por de baixo do avental, notou que as tinha
desapertadas na cintura, sentiu nas narinas o cheiro a esturro do assado que se
queimava na cozinha. Não tinha o cabelo arranjado nem pintura nos olhos ou nos
lábios, vestia-se de quarentena há já quatro semanas, sempre a recomendar a
lavagem das mãos.
Chamou o filho, que ia enchendo o lavatório de espuma e de
bolinhas de sabão:
- João, anda fazer companhia
a Jesus Cristo, enquanto sirvo uma malga de sopa a cada um.
O menino veio logo, de mãos
molhadas e sorriso aberto. Empertigou-se para a janela e pousou o olhar
infantil no conjunto enferrujado e magro. Nem Jesus Cristo se moveu nem a cruz ganhou outra dimensão. Mas o
menino viu-o rebrilhando ao sol, como se fosse em aço inoxidável. E da cozinha
chegou-lhe o som metálico da sineta, como se o sacristão tivesse entrado pelas
traseiras. Tirou uma amêndoa que tinha no bolso das calças e meteu-a à boca. A
mãe chegava com duas malgas de sopa, fumegando um perfume a feijão e hortaliça.
É sempre domingo de Páscoa,
com ou sem quarentena. O compasso há-de regressar às ruas para o ano que vem,
quando estiver de novo aberta a porta da igreja e as andorinhas tiverem pousado
nos beirais.
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial