12 de abril de 2020

Domingo de Páscoa


O menino subiu as escadas a correr até ao segundo andar, quase tropeçando nos degraus, aproveitou o facto da porta estar apenas encostada e foi apressadamente ter com a mãe que estava na cozinha a tratar do almoço. A mãe tinha o aspecto bonito e doce que têm todas as mães, usava uma leve camisola de algodão, de um cor-de-rosa fresco e esbatido, e tinha um avental que lhe protegia a elegância esguia das pernas e o asseio engomado das calças justas.

E o menino disse, gaguejando com a excitação:
- Mãe, o Cristo está lá em baixo, à entrada da porta.


A mãe olhou-o de soslaio, com aquele sorriso amarelo e doce que têm todas as mães, e retorquiu, tranquila:
- Vai deixar as sapatilhas do lado de fora da porta, vira as calças do avesso, lava as mãos com muito sabão e vai pensando em te sentares à mesa para comeres a sopa de abóbora. E eu já vou ver se Jesus Cristo abriu a porta da igreja e fugiu da quarentena, como mandam o bispo e o governo, e anda aí pelas ruas desertas de sinetas e de amêndoas, a assomar a cada esquina.

O menino baixou o olhar triste e contrariado e, a passo lento e curto, foi ao cumprimento das ordens da mãe. Esta passou as mãos pelos cabelos que lhe caíam sobre os ombros e dirigiu-se a uma das janelas que davam para a rua onde a calçada de granito brilhava ao sol do meio dia de abril. Para seu espanto, Jesus Cristo estava do lado de fora, pregado a uma cruz alta, de ferro, que chegava à altura do segundo andar, esquálido de ferrugem e magro de quarentena. Ninguém o acompanhava, nem o padre metido no seu hábito branco, com a barriga proeminente empurrando o caminho, nem o sacristão agitando a sineta e carregando um saco de plástico com a marca de um supermercado, pronto a receber as oferendas – sempre em dinheiro, porque Jesus Cristo não usa multibanco – e a abrir-se para deixar em cada casa um pequeno pacotinho de amêndoas baratas para as crianças.

A senhora ruborizou-se, sem jeito limpou as mãos às calças por de baixo do avental, notou que as tinha desapertadas na cintura, sentiu nas narinas o cheiro a esturro do assado que se queimava na cozinha. Não tinha o cabelo arranjado nem pintura nos olhos ou nos lábios, vestia-se de quarentena há já quatro semanas, sempre a recomendar a lavagem das mãos. 

Chamou o filho, que ia enchendo o lavatório de espuma e de bolinhas de sabão:
- João, anda fazer companhia a Jesus Cristo, enquanto sirvo uma malga de sopa a cada um.

O menino veio logo, de mãos molhadas e sorriso aberto. Empertigou-se para a janela e pousou o olhar infantil no conjunto enferrujado e magro. Nem Jesus Cristo se moveu  nem a cruz ganhou outra dimensão. Mas o menino viu-o rebrilhando ao sol, como se fosse em aço inoxidável. E da cozinha chegou-lhe o som metálico da sineta, como se o sacristão tivesse entrado pelas traseiras. Tirou uma amêndoa que tinha no bolso das calças e meteu-a à boca. A mãe chegava com duas malgas de sopa, fumegando um perfume a feijão e hortaliça.

É sempre domingo de Páscoa, com ou sem quarentena. O compasso há-de regressar às ruas para o ano que vem, quando estiver de novo aberta a porta da igreja e as andorinhas tiverem pousado nos beirais.


0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial