Trigésimo oitavo dia
Estou no trigésimo oitavo
dia de quarentena, já me doem os pés de tanto olhar para eles, com as
sapatilhas por apertar. Tenho deixado acumular o lixo no saco e as teias de
aranha nos tectos, como não há moscas, protejo as aranhas, nem as abato nem
lhes estrago a casa. Por medo do escuro e receio do vírus, durmo com uma mão
travessa dos estores levantada. Sempre entra alguma luz difusa do candeeiro
fronteiro, se a câmara pagar as contas à dona da luz e distribuidora de
dividendos, que não chega para me perturbar o sono ou para me fazer sonhar com
sereias ou com rinocerontes, depois de me certificar que não flutuam sonhos na
rua nem dormem rinocerontes nos portais.
De manhã aceno às gaivotas
que descansam nas chaminés dos edifícios do outro lado da rua, confirmando
sempre se estão todas. Fomo-nos conhecendo lentamente, com o decorrer dos dias,
sei-lhes os nomes, todos começados por um caracter especial, e elas
adivinham-me o estado de espírito e a ramela nos olhos, sugerem-me uma escova
no cabelo se ainda estou desgrenhado, riem-se-me na cara grasnando um coro
insolente e desafinado que me chateia, esvoaçam para me mostrarem que não tenho
asas e que posso tombar da janela. Queixam-se da falta de comida nos
contentores e do reduzido número de alvos para o voo e para os dejectos, não
têm onde trabalhar e o mar já se queixa disso. Têm razão elas e o mar, mas não
há livro de reclamações onde possam fazê-lo, estão encerradas as papelarias que
os vendem e até a autoridade oficial que fiscaliza o cumprimento das normas. Além
do pormenor delas não saberem escrever e de terem parado no tempo, não
adoptando as novas tecnologias que fariam de cada uma delas um poema musicado e
um livro de sucesso a publicar depois do surto e das cerejas.
Há uma que me grasna de
forma compreensiva, creio que já nos encontrámos no ginásio que frequentei
antes disto tudo, e as outras mantêm-se quietas e caladas, consentem como se
fossem casar no próximo sábado, se os casamentos não estivessem proibidos a
todas as virgens ou não. A que grasna deve ser a que lidera, a presidente da
junta, a capitã de equipa, a chefe de turma, o olhar superior, o perfil erecto,
o peito para fora como um soldado pronto para a guerra, há-de ganhar a medalha
da condecoração depois das guerras púnicas, vai ser o presidente a pôr-lha ao
pescoço num feriado de manhã. Mas chegamos sempre a um entendimento rápido e fácil,
elas mantêm o voo, eu mantenho o recolhimento. Tudo ao nível do estrictamente
necessário e indispensável, quer da parte delas, quer da minha. Elas não vão empunhar
cravos vermelhos no 25 de Abril, eu não vou voar e cagar no tejadilho dos
automóveis da travessa, são assim as sociedades de especialistas, cada um faz
aquilo que sabe, aquilo para que estudou, e é por isso que há desemprego e
tanta gente e tanta gaivota sem fazer nada, para já não falar nos analfabetos
com estudos e nos estudos sem uma quadra escrita, uma perfeita redondilha
maior.
Mas há gente que não tem
medo do escuro e que se limita a difundir o cagaço do vírus e que, por isso,
fecha completamente os estores das janelas que tem e não vê para lado nenhum,
nem para dentro nem para fora, são cegos da cabeça aos pés, podem ter o vírus
nas mãos e não lhe apertam o pescoço nem o dissolvem em formaldeído, como
mandam a química e o bom senso. Não fazem amizade com as gaivotas, não lhes sabem
os nomes, não lhes respeitam o território nem lhes aparam as unhas, não há
barcos que de manhã lhes entrem pela janela quando a maré sobe e o peixe é à discrição,
sem necessidade da cantilena na lota. Onde é tudo à grande, como nas
marisqueiras, não fosse a quarentena e hoje havia de me rodear de lagostas por
todos os lados. Pelo menos setenta, para parecer um árabe a caminho do céu,
todo armadilhado da cintura para baixo.
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