21 de abril de 2020

Trigésimo oitavo dia


Estou no trigésimo oitavo dia de quarentena, já me doem os pés de tanto olhar para eles, com as sapatilhas por apertar. Tenho deixado acumular o lixo no saco e as teias de aranha nos tectos, como não há moscas, protejo as aranhas, nem as abato nem lhes estrago a casa. Por medo do escuro e receio do vírus, durmo com uma mão travessa dos estores levantada. Sempre entra alguma luz difusa do candeeiro fronteiro, se a câmara pagar as contas à dona da luz e distribuidora de dividendos, que não chega para me perturbar o sono ou para me fazer sonhar com sereias ou com rinocerontes, depois de me certificar que não flutuam sonhos na rua nem dormem rinocerontes nos portais.

De manhã aceno às gaivotas que descansam nas chaminés dos edifícios do outro lado da rua, confirmando sempre se estão todas. Fomo-nos conhecendo lentamente, com o decorrer dos dias, sei-lhes os nomes, todos começados por um caracter especial, e elas adivinham-me o estado de espírito e a ramela nos olhos, sugerem-me uma escova no cabelo se ainda estou desgrenhado, riem-se-me na cara grasnando um coro insolente e desafinado que me chateia, esvoaçam para me mostrarem que não tenho asas e que posso tombar da janela. Queixam-se da falta de comida nos contentores e do reduzido número de alvos para o voo e para os dejectos, não têm onde trabalhar e o mar já se queixa disso. Têm razão elas e o mar, mas não há livro de reclamações onde possam fazê-lo, estão encerradas as papelarias que os vendem e até a autoridade oficial que fiscaliza o cumprimento das normas. Além do pormenor delas não saberem escrever e de terem parado no tempo, não adoptando as novas tecnologias que fariam de cada uma delas um poema musicado e um livro de sucesso a publicar depois do surto e das cerejas.


Há uma que me grasna de forma compreensiva, creio que já nos encontrámos no ginásio que frequentei antes disto tudo, e as outras mantêm-se quietas e caladas, consentem como se fossem casar no próximo sábado, se os casamentos não estivessem proibidos a todas as virgens ou não. A que grasna deve ser a que lidera, a presidente da junta, a capitã de equipa, a chefe de turma, o olhar superior, o perfil erecto, o peito para fora como um soldado pronto para a guerra, há-de ganhar a medalha da condecoração depois das guerras púnicas, vai ser o presidente a pôr-lha ao pescoço num feriado de manhã. Mas chegamos sempre a um entendimento rápido e fácil, elas mantêm o voo, eu mantenho o recolhimento. Tudo ao nível do estrictamente necessário e indispensável, quer da parte delas, quer da minha. Elas não vão empunhar cravos vermelhos no 25 de Abril, eu não vou voar e cagar no tejadilho dos automóveis da travessa, são assim as sociedades de especialistas, cada um faz aquilo que sabe, aquilo para que estudou, e é por isso que há desemprego e tanta gente e tanta gaivota sem fazer nada, para já não falar nos analfabetos com estudos e nos estudos sem uma quadra escrita, uma perfeita redondilha maior.

Mas há gente que não tem medo do escuro e que se limita a difundir o cagaço do vírus e que, por isso, fecha completamente os estores das janelas que tem e não vê para lado nenhum, nem para dentro nem para fora, são cegos da cabeça aos pés, podem ter o vírus nas mãos e não lhe apertam o pescoço nem o dissolvem em formaldeído, como mandam a química e o bom senso. Não fazem amizade com as gaivotas, não lhes sabem os nomes, não lhes respeitam o território nem lhes aparam as unhas, não há barcos que de manhã lhes entrem pela janela quando a maré sobe e o peixe é à discrição, sem necessidade da cantilena na lota. Onde é tudo à grande, como nas marisqueiras, não fosse a quarentena e hoje havia de me rodear de lagostas por todos os lados. Pelo menos setenta, para parecer um árabe a caminho do céu, todo armadilhado da cintura para baixo.



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