21 de fevereiro de 2004

O exemplar funcionamento da justiça portuguesa


A justiça portuguesa pode funcionar com alguma lentidão, embora ligeira. Mas pode também, e por isso, orgulhar-se de ser isenta, independente do poder político, empenhada e eficaz. É um rotundo disparate estar aqui a escrevê-lo neste momento quando, dois dias atrás, ela deu irrefutáveis provas disso. Felizmente que, para a tranquilidade do cidadão comum, as câmaras de televisão estavam acidentalmente por perto e puderam registá-lo. Ainda mal o Dr Vale e Azevedo tinha posto o pé direito na rua, vindo da prisão, carregando na mão uma maleta de cartão que parecia comprada à compatriota Linda de Suza, e já uma brigada da polícia de investigação se lhe interpunha no percurso. Para, muito educadamente, lhe dizer: "Bem vindo à liberdade senhor doutor. Como está, como se sente e como vai a família? Temos a comunicar a V. Exa. que o meritíssimo juiz da enésima vara criminal de Lisboa o convida para um chá de cidreira que, se for a seu gosto, será acompanhado com biscoitos de sortido húngaro". Nunca poderia um homem de princípios, como o ex-presidente do Benfica, declinar o convite. Até ficou para o dia seguinte e para os próximos.

Quanto à lentidão, são mais as vozes do que as nozes, como diz o povo do Sr Jorge Perestrelo. O Público de hoje vem afirmar, com os habituais zelo e isenção do seu director, que há fraudes fiscais em Trás-os-Montes com desvio de verbas por apurar ao fim de 12 anos. Um pequeno atraso, nem tão grande que mereça reparo, mas está bem. Há mais tempo do que isso estão o Sr Narciso Miranda na Câmara de Matosinhos e o Sr Pinto da Costa no Futebol Clube do Porto e nenhum deles parece cansado!

A investigação leva dez anos, recolheu milhares de páginas - um desperdício de papel inqualificável - que indiciam inúmeras fraudes. Visados, entre outros, o então Director Geral de Florestas e o actual Presidente da Câmara de Boticas. Terão sido indevidamente pagos valores significativos na alegada prática de crimes de corrupção, - que toda a gente sabe não existir em Portugal. O único que discorda é o Dr Dias da Cunha! - peculato, participação económica em negócio, falsificação de documentos, abuso de poder e favorecimento pessoal.

É sempre a mesma coisa: indícios, indícios, indícios. Nunca ninguém sabe, nunca ninguém viu, nunca ninguém lá esteve. Como na história do marido que se julga traído pela mulher e que contrata, a peso de ouro, um detective particular que lhe siga os passos. E este vê-a entrar, acompanhada por um marmanjo de aspecto reguila e ar suspeito, num quarto de pensão. Pelo buraco da fechadura ainda foi possível ver que ambos se despiam, até que o marmanjo tivesse pendurado na chave, pelo lado de dentro, o gorro que trazia enfiado na cabeça. A observação terminou aí e a sua tarefa só prosseguiu, de novo na rua, passadas duas horas. Correu ao seu cliente a fazer-lhe o relato minucioso. Não, não lhe tinha sido possível verificar se tinham assumido posições mais íntimas ou de decúbito dorsal. E o desconfiado marido tem que reconhecer que lhe não trazem mais do que indícios e que, afinal, persiste a eterna dúvida de sempre: ser ou não ser corno!

Apesar das acusações graves os processos têm sido, muito justamente, arquivados. Mesmo que o Ministério Público seja o primeiro a dizer que "existem indícios que fazem suspeitar de autorização de despesas antes do cabimento, de concursos para obras já realizadas, de trabalhos pagos e não realizados, projectos elaborados por funcionários, propostas irregulares, irregularidades nos concursos, desdobramento de despesas, facturas e recibos sem datas e sem destinatários e recibos em duplicado". O arquivamento, todavia, nunca foi decidido sem que primeiro e de forma veemente os suspeitos tivessem negado quase todas as acusações e, quando assumiram alguma, salientaram sempre tê-lo feito sem qualquer intenção criminosa.

Bem diz a exemplar autarca de Felgueiras que não fugiu. Limitou-se a pegar num automóvel que, por acaso, lhe deu o seu ex-marido. Dirigiu-se a Madrid para comprar alguma lingerie de que precisava para as missas de domingo. Passou acidentalmente pelo aeroporto de Barajas onde parou para tomar café. Vieram impingir-lhe um bilhete de avião, a preço de saldo, para um voo a partir dentro de minutos. Lembrou-se que bem lhe saberia o mergulho na praia de Copacabana e que novo alento lhe daria para continuar a trabalhar em benefício dos seus queridos munícipes. Aproveitou! Com espanto e muita indignação - direito que o Dr Mário Soares teve o cuidado de instituir! - soube dois dias depois que lhe tinham decretado prisão preventiva no âmbito de um processo que nem sabe do que trata. Assim, a frio, sem saber ler nem escrever! Agora está exilada, que ela é autarca mas não é burra!

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