19 de fevereiro de 2004

A heróica inauguração do funicular. Ou do elevador?


Ontem, por razões de ordem pessoal, não estive no Porto. Mal eu sabia o que iria perder porque, se o adivinhasse, poderia o governo cair, o Dr Vasco Pulido Valente publicar a sua crónica antes de tempo ou mesmo o Sr Luís Delgado divulgar os resultados das presidenciais daqui a dois anos e picos que eu não arredaria pé. Queria estar na primeira linha, a gozar o espectáculo e a agitar freneticamente uma bandeirinha da cidade, gritando vivas a Portugal e ao Porto 2001, capital europeia da cultura.

Com pompa, música e circunstância foi inaugurado o elevador dos Guindais. Uma das obras de referência da Porto 2001 que, quando concluída, ninguém sabia se servia para alguma coisa e nem sequer queria pegar nela. Mesmo tendo tido tempo suficiente para lhe escolherem o nome, há dois dias atrás chamavam-lhe funicular, que eu até achei um nome bué de fixe, quanto mais não fosse porque não sabia o que queria dizer. Hoje o jornal já lhe chama só elevador, que é um nome vulgar, qualquer prédio de três andares tem um e às vezes mais.

A cabine, com capacidade para 25 pessoas, foi engalanada, com a bandeira nacional, a da cidade e a do chamado Metro do Porto. Por fora, sem prejudicar a vista de que se pode disfrutar durante o percurso, foram afixados cartazes com as esfinges do Ministro das Obras Públicas, dos presidentes das câmaras de Porto e Gondomar, do presidente do chamado Metro do Porto e ainda do Presidente da Liga de futebol. Como o major Valentim, com muito sacrifício das suas horas de descanso e da sua conta bancária, acumula mais que um cargo o cartaz com a sua esfinge tinha, muito justamente, o triplo do tamanho dos outros. E eu acho que até devia ser maior porque ele, sem ofensa, é assim um meia leca que não tem muito mais de metro e meio.

À hora marcada os voluntariosos Mareantes do Rio Douro já tinham malhado nos bombos para lá e para cá, alguns tinham mesmo as peles rebentadas, as ilustres personalidades perfilavam-se no cais de embarque, felizes e sorridentes querendo ir todas na primeira viagem. Forem embarcando muito ordeiramente, obedecendo à chamada que o Sr major fazia, a lembrar os seus tempos de tropa. Ao vigésimo quinto perguntou "quantos são" como sé seu hábito e disse, elevando a voz "alto e para o baile, não entra mais ninguém".

O Sr ministro já vinha preparado, - quem vai para o mar avia-se em terra! - tirou do bolso a tesoura novinha em folha que trazia, em aço inox, cortou a fita bicolor, verde e mermelho, as cores nacionais, deitaram-se foguetes que estoiraram no ar, alguns transeuntes tiveram que furtar-se à queda das canas, a charanga tocou a Maria da Fonte, toda a gente bateu palmas ruidosamente como se aplaudisse o Sr Quim Barreiros. De peito cheio, de ar e orgulho, o Sr major pensava baixinho: "hoje até podiam ser o dobro deles, aviava-os rodos".

Cortada a fita, foi o Sr ministro convidado a virar o pinxavelho que punha a geringonça em movimento. Nova salva de palmas, foguetes de morteiro, os mareantes capricharam no ataque aos bombos. A cabine, o elevador, o funicular ou lá o que é permaneceram silenciosos e imóveis. Não soltaram um gemido, não se ouviu um silvo, não se deslocaram um dedo que fosse. O Sr bispo do Porto reforçou a água benta, o Sr major benzeu-se, o Dr Rio tirou o terço do bolso, o Sr presidente da Liga começou a matutar que nunca se podia confiar no árbitro sem lhe ter pago antes.

Deve ser excesso de peso, alvitrou alguém que sabia da poda, que sabia como tinham sido as tripas à moda do Porto, generosamente regadas que o cravinho da Índia puxa. Sairam todos, os mais crentes benzeram-se, os outros seguiram-lhes o exemplo, alguns com a mão esquerda, para não parecer mal. Decidiram embarcar apenas dez, alguns ficaram para as viagens seguintes, outros desistiram. Não fosse aquela porra - quarto nome dado à geringonça - precipitar-se pela escarpa abaixo. O ministro, de sorriso amarelo, virou o pinxavelho, os fotógrafos, atentos, registaram o acto, os operadores de câmara gravaram para os jornais da noite, os presidentes das juntas, com lugar nas filas de trás, puseram-se em bicos de pés para também apareceram nas fotografias e nas televisões. A geringonça, sem coração, não se incomodou com a angústia e com a ânsia de ninguém: manteve-se imóvel. Nem o mais pequeno movimento, um curto lampejo uma imperceptível faísca. Nada.

Voltaram a sair, voltaram a entrar, o Sr bispo esgotou a água benta, o Sr major tinha o braço cansado de tanto sinal da cruz, o Dr Rio convocava a vereação e falava em sabotagem, os populares apinhavam-se no cimo da subida para verem a geringonça e o ministro. Alguns já comiam do farnel que tinham trazido, algumas crianças impacientavam-se, queriam era uma pastilha elástica, choravam, as mães prometiam-lhes porrada. Pela quarta vez o Sr ministro deu à coisa - salvo seja! - e surpresa, a geringonça iniciou-se lentamente na subida, os dez passageiros agarraram-se uns aos outros para não baldearem, os mais medrosos encomendaram-se a Deus e aos Santos, pediram a benção ao Sr bispo, foram rezando discretamente para os julgarem valentes, como sempre fica bem nas cerimónias públicas.

No topo da escarpa, longos e dolorosos 280 metros depois, os repórteres atropelavam-se, todos queriam registar as primeiras declarações dos ilustres bandeirantes do funicular. Com ministro ou sem ele, o Sr major não podia deixar também falar, até porque não é mudo e nem sequer gago.Com um sorriso aberto, do tamanho do percurso, declarou "a viagem foi maravilhosa". Ninguém se admirou. Toda a gente sabe que o futebol chafurda numa pocilga que nem vedada é, cheira a merda por todos os lados e o Sr major, que é um optimista, continua a dizer que lhe cheira a perfume Givenchy!

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