8 de abril de 2004

Quase ao cair da Quaresma

Mais vale tarde do que nunca! Quando o período da Quaresma se encaminha velozmente para o fim, mesmo não sendo católico praticante, deixo aqui transcrita a mensagem do Bispo do Porto, D. Armindo Lopes Coelho, proferida na Homília na Sé Catedral do Porto, na quarta-feira de cinzas, em 5 de Março último.


Sé Catedral do PortoMeus Caros fiéis:

Iniciamos a Quaresma, segundo o costume da Igreja, em Quarta-feira de Cinzas, com a Celebração que se caracteriza pela Bênção e Imposição das Cinzas, ritual que se inspira na mais antiga tradição do Povo de Deus. É uma cerimónia que evoca as nossas origens e fragilidades, a nossa história de infidelidades e fraquezas, o nosso destino e a vontade e propósito de conversão, individual e colectiva. Para esta Quarta-feira de Cinzas de 2003 fomos convocados com urgência pelo apelo do Santo Padre na oração do "Angelus" do passado dia 23 de Fevereiro, no sentido de fazermos deste dia uma jornada de oração e de jejum pela causa da paz, pedindo uma especial assistência à Bemaventurada Virgem Maria, Rainha da Paz.

Na antiga Tradição da Igreja, a Quaresma é um período de preparação para o grande acontecimento da Páscoa, como "tempo forte de oração, de jejum e de compromisso com todos os que passam necessidades", à luz da Palavra de Deus que ilumina os caminhos e critérios dos que n'Ele acreditam. (Cf. Mensagem de João Paulo II para a Quaresma de 2003).

A mesma Palavra de Deus é-nos apresentada como guia de reflexão quaresmal, por esclarecer que "a felicidade está mais em dar do que em receber" (Act. 20, 35), aliás de harmonia com o que está inscrito e brota naturalmente do íntimo do coração humano. É certo que o egoísmo, a cultura do efémero, a ambição do ter e a indiferença pelo sofrimento alheio surgem e medram como ervas daninhas no nosso mundo e na nossa sociedade, mas não anulam a Palavra de Deus nem apagam os melhores sentimentos da pessoa humana. E é por isso que não podemos deixar de nos alegrar com a oportunidade que a Quaresma nos dá para nos purificarmos, nos convertermos e reencontrarmos a genuína vocação da nossa vida e o sentido do nosso destino como criaturas de Deus.

A voz dos Profetas, como Joel, lembra a todos os que procuraram felicidade sem Deus ou contra Deus que "ainda é tempo de voltarem para Ele" (Joel 2, 12), que é "generoso e cheio de compaixão" (Joel 2,13). E, enquanto o profeta Joel convida à Conversão, ao regresso a casa do Pai, o Apóstolo S. Paulo faz-se embaixador de Deus para nos pedir a reconciliação com o Pai:
"Deixai-vos reconciliar com Deus" (2 Cor. 5, 20). E não se trata de um propósito a acalentar para o futuro, mas de prevenir: "este é o tempo favorável; este é o dia da salvação" (2 Cor. 6,2). Para cada um e por causa dos outros.
Urgência na linguagem dos profetas e oportunidade na pregação da Igreja são modos habituais de apresentar a Quaresma como "ocasião propícia para corajosas opções de altruísmo e generosidade" (Mensagem do Santo Padre, nº 4). De resto, é o próprio Cristo que de modo claro indica as práticas quaresmais como boas obras que a Igreja tem mentido e aconselha: a esmola, a oração e o jejum.

Nem sempre se dá valor a estas práticas de fé e de purificação, sobretudo porque delas se fixa o nome e se esquece o conceito e o significado. A oração consiste essencialmente na atitude de escuta da Palavra de Deus e de silêncio para o diálogo com Deus. A esmola é sobretudo solidariedade, partilha e atenção às carências do outro, do irmão. E o jejum não é simples renúncia ou rejeição. Melhor do que ninguém o descreve o Profeta Isaías: " O Jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que transportam, dar a liberdade aos oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos pobres sem casa, vestir os que vires sem roupa" (Is. 58, 6-7).

Quando fala destas práticas que o seu Povo conhecia e a Igreja veio a adoptar, Cristo é muito duro com os hipócritas e diz mesmo que a falta de discrição, a vaidade, o exibicionismo, a publicidade e a presunção são a única recompensa para os hipócritas. Isto é, não têm qualquer valor ou utilidade. O que importa é que a oração, a esmola e o jejum aproximem de Deus e se aproximem dos irmãos.

Tendo enviado ao mundo a sua habitual Mensagem para a Quaresma, o Papa entendeu ser urgente congregar-nos para uma jornada especial neste início de Quaresma. A iminência de uma guerra contra o Iraque foi e é o motivo desta jornada de oração e jejum pela causa da paz. As cinzas que hoje benzemos e impomos sobre a cabeça lembram-nos a nossa condição de criaturas, de vida efémera, de condição igual, de dependência em relação a Deus, de fraternidade com os outros. O jejum é um apelo ao humanismo, à solidariedade, à partilha, à atenção para com os outros. E por isso a guerra surge como uma ruptura, uma desumanidade, uma desordem e uma desgraça, uma mudança para pior em relação às vítimas dos ódios e violências, e em relação aos irmãos.

Quando parece e se diz que a guerra é inevitável, quando se verifica que se preparam os homens e as máquinas para essa guerra cujo início se vem marcando, o Papa luta, continua a lutar em diligências diplomáticas, em contactos pessoais, por mensagens que se sucedem, pela oração pessoal, pelo convite à nossa oração, para que não haja guerra. Reza e convida-nos a rezar e fazer penitência para que não haja guerra. Continuará a rezar pela paz e convocar-nos-á para a oração e penitência pela paz, mesmo que a guerra se desencadeie. Porque, de olhos postos na terra de Jesus e tendo presente a terra de Abraão, João Paulo II repete a atitude e o espírito do mesmo Abraão, do qual dizia S. Paulo: "Acreditou e teve esperança, contra toda a esperança, mesmo quando não havia razão para esperar" - "contra spem in spem credidit" (Rom. 4, 18).

Convocados para uma Celebração de início de Quaresma, a nossa presença aqui hoje é também de oração e de penitência em Comunhão com o Papa, na comunhão de toda a Igreja, em solidariedade e solicitude para com todos os que se sentem ameaçados pela guerra. E neste momento não se saberá nem interessará propriamente saber quem está isento do perigo e das consequências de uma guerra. Não viemos aqui movidos por razões políticas ou ideológicas, nem por obediência seguidista, nem por imitação ou exemplos de conveniência. Viemos por solidariedade com os que dela precisam, e por solidariedade e comunhão com o Papa, pelo que ele é como sucessor de Pedro, e pelo que ele é enquanto João Paulo II, independentemente dos elogios "dominicais" ou das críticas e enxovalhos "feriais" com que o distinguem ou criticam, ao sabor de apropriações ou evocações interessadas.

Como ele diz na sua Mensagem quaresmal, "é o amor de Deus infundido em nossos corações que deve inspirar e transformar o nosso ser e o nosso agir. Que o cristão não se iluda de poder conseguir o verdadeiro bem dos irmãos, se não vive a caridade de Cristo" (nº 4).

Renúncia quaresmal
Como vem sendo habitual no nosso país, cada Bispo, ao iniciar-se a Quaresma, anuncia aos fieis da sua Diocese qual o destino a dar ao produto da partilha ou renúncia quaresmal. Mais uma vez nesta Diocese do Porto o produto da renúncia quaresmal destina-se à Casa Sacerdotal, em construção nos terrenos da Torre da Marca, entre a Rua da Boa Nova e a Rua de Júlio Dinis. Mais uma vez quero deixar claro que os sacerdotes têm direito a uma habitação condigna e, especialmente no Outono da vida, precisam de encontrar residência e cuidados adequados à vida, saúde e idade. Esperamos que a Casa Sacerdotal esteja aberta dentro de uns dois anos, como está previsto. E desde já manifestamos a nossa admiração e gratidão para com aqueles que nos têm apoiado com as suas ofertas espontâneas e generosas, destacando-se os sacerdotes, os religiosos e as religiosas. E por isso entendo ser meu dever apelar para a colaboração generosa de todos os fiéis.

Porto, 5 de Março de 2003
Homilia na Sé Catedral na Quarta-feira de Cinzas
† Armindo Lopes Coelho
Bispo do Porto

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