7 de abril de 2004

Um governo sem palavra, S.A.

O governo, ao que parece, comemorou ontem dois anos de exercício do poder político. Antes já tinha aproveitado um fim de semana para o almoço de confraternização, paredes meias entre a terra saloia e a fímbria do mar. A ementa não foi divulgada e os jornalistas foram impedidos de registar as piadas e as anedotas de mau gosto - e até ordinárias! - que ocorrem ao mais fleumático ministro quando o teor de álcool lhe sobe no sangue.

Estes dois anos foram assinalados com anúncios. De página inteira, em fundo bege e com letras pequeninas, em itálico, iguais às das apólices de seguro que as companhias não querem que os seus segurados leiam. Este governo tende, cada vez mais e de baixo para cima, a ser o governo do anúncio. Seguramente em obediência ao visionário parecer de consultores de marketing vindos do Brasil, dirigidos por um Ataíde qualquer que já dispõe de certificado de residência e autorização de trabalho, embora nunca tenha jogado futebol nas ligas do major Loureiro.

As únicas palavras que se conseguem ler à vista desarmada dizem textualmente: MUITO TRABALHO FEITO. E MAIS VAMOS FAZER. UM GOVERNO DE PALAVRA. DOIS ANOS DE GOVERNO EM QUATRO DE MANDATO. A última frase está inscrita entre os logotipos, diminutos e envergonhados, dos partidos do Dr Barroso e do Dr Portas. Para não dar nas vistas e o leitor mais desprevenido não ligar importância nenhuma, a julgar que se trata da programação das novelas da TVI ou da cultura da televisão do Dr Sarmento.

Esta apresentação é obviamente premeditada porque de outro modo o berreiro continuaria pelas ruas e ninguém daria pela efeméride a não ser o cronista do regime, Luís Delgado. Antigamente o Dr Salazar, cuja memória não queremos diminuir ao referi-lo conjuntamente com esta gente, sentava-se à sua mesa de trabalho em S. Bento, punha a manta de lã artesanal por cima dos joelhos, sacava dos óculos para a vista cansada e redigia os despachos como um eremita internado no mosteiro de Singeverga. Governava a partir daquele gabinete e daquela mesa, de onde apenas se levantava quando a D. Maria o chamava para a refeição frugal, quando a isso o obrigavam necessidades fisiológicas que também tinha ou quando era tempo de dormir umas horas ou de rezar o terço.

Este governo, de forma inovadora e graças à inteligência brilhante de todos os assessores de propaganda de que dispõe, governa cada vez mais por anúncio. Podia fazê-lo entregando os textos ao Diário da República, que é um jornal oficial, como se fossem portarias ou concursos para lugares de contínuos numa inexistente repartição do interior do país. Mas não! Tendo vendido os jornais de que dispunha, paga os anúncios à linha, segundo a tabela de preços em vigor. Embora lhe saia dispendioso, não lhe fica mal. Sempre anima a retoma a nível das agências de publicidade e das direcções financeiras das empresas e pode depois referi-lo com a convicção desgrenhada da Dra Manuela Leite.

O anúncio começou pelo Hospital de S. João, orgulhoso e de peito atirado para fora, como se fosse um brioso militar sob o comando do nosso chefe de quina da defesa. Para revelar - coisa importante - em primeira mão, que tinha feito mais duas consultas, dado alta três dias mais cedo a três internados e, apesar disso, poupado em horas extraordinárias o equivalente e dois passes sociais. Prosseguiu depois com o ministro, ele próprio, a tecer largos elogios aos SA, os seus rebentos de estimação, cabelos aos caracóis e olhos docemente infantis. Apenas por descuido não referiu nenhum critério, não divulgou nenhumas contas tal como são entendidas e alguém se esqueceu de referir que custos importantes foram criativamente suprimidos.

Agora o governo, ele próprio. O governo do anúncio, a cometer um quase infamante plágio, fazendo publicar páginas inteiras de necrologia. A que apenas falta a cruz negra e o nome da agência que assume a responsabilidade do enterro. O que nos impede, naturalmente, de enviar o cartão formal de condolências a acompanhar o ramo inevitável de flores. Temos que passar pelo velório!

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