10 de maio de 2004

O país excita-se à segunda-feira

Sendo segunda-feira, contra o que é habitual, o país não foi hoje acordando aos poucos, bocejando, esfregando os olhos e atascando-se aos lençóis por mais dez minutos neste Maio de desconseguida primavera que, sem ser, está quase a chegar a já era. Mais, o país não acordou intranquilo. Ainda madrugada, mal o sol ameaçava despontar a oriente, como um poema do Sr Carlos Drumond de Andrade, a televisão sarnenta do ministro Sarmento espalhava jovens repórteres sonolentas e de fraldas às portas do tribunal, da juíza e dos arguidos. O país acordava excitado. A segunda-feira deixa, assim, de ser preenchida com o futebol da véspera, com os que sobem, com os que descem e com a qualidade do material de que se fazem os apitos dos árbitros. As vendas dos jornais desportivos desceram, as tiragens caíram e as empresas anunciam a eminência da crise e da tanga.

O dia, mesmo antes de começar, é dominado pelo debate instrutório do processo Casa Pia, como se disso dependesse o futuro de tudo, mesmo o do debate e o do processo. A televisão que pagamos para que o governo se sirva, elege o tema como o assunto do dia e, talvez por dificuldades financeiras, não comete a responsabilidade da reportagem a relatores mais experientes e mais expansivos como o Sr Jorge Perestrelo. O que é pena porque o realismo seria outro e cada golo na baliza do adversário seria saudado com um grito de cinco minutos de duração, três metros cúbicos de ar expirado e trinta e dois pontapés, em falso, para o lado.

Mais e melhor do que meia dúzia de Sherlock Holmes, fica-se a saber a que horas alguns dos arguidos deram banho ao cão, trataram da sua higiene diária, se permitiram soltar um sonoro peido matinal em si bemol e abriram os braços, espreguiçando-se. Divulga-se a cor rosa da roupa interior que a juíza usa e não se lhe revela a marca por causa da publicidade gratuita. Mas sabe-se-lhe o corte do fato e a altura dos saltos dos sapatos, o tipo de carteira que carrega e que objectos amontoou lá dentro. Espreitam-se-lhe os cartões de crédito e as facturas para pagar que espreitam sorrateiramente dos bolsos.

À porta do tribunal uma garota, coitada, esganiça a voz, explode, entra em transe, declama o código penal como se fosse a Ode Marítima dita de fio a pavio pelo próprio Fernando António Nogueira Pessoa, depois de uma noite tempestuosa em que choveu bagaço e o mesmo sobrou escorrendo, tumultuoso, pelas sarjetas. Os automóveis, diz, entram no tribunal a grande velocidade sem que ela reconheça quem transportam. Mais difícil ainda, sem que se esbarrem contra as paredes de entrada da garagem e sem que saiam pelo outro lado do edifício por falta de espaço para se imobilizarem. Em contravenção do código da estrada!

Diligente, estudiosa, licenciada com nota alta, sabe tudo. Preparou tudo, estudou tudo. Quem vai estar presente e quem vai estar ausente, por não ser necessário. Quem fala primeiro, quem fale no meio, quem fala por último. A que horas é o intervalo para almoço, a duração que terá e qual será a ementa, além do caldo verde. Inquire os defensores que vão chegando sobre a estratégia. Alguns, brilhantes, referem-lhe a estratégia da verdade contra a estratégia da mentira. Outros, também brilhantes, preferem a estratégia da mentira contra a estratégia da verdade. As poucas empregadas domésticas que Bruxelas ainda tolera ao país desenvolvido, roem as unhas até ao sabugo, torcem o pano do pó, deixam cair gotas de lixívia nas carpetes e contorcem-se enquanto apertam as pernas, com a bexiga a transbordar. Enquanto sonham ver, como no Big Brother, aparecer um dos arguidos usando apenas umas boxers com passarinhos estampados na carcela.

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