1 de dezembro de 2004

O circo

A quadra que se aproxima é, por tradição, aquela em que se comem as couves com bacalhau na noite de consoada, se vai à missa do galo beijar o pé do menino Jesus que o pressuroso pároco vai limpando com um encardido lenço que terá sido branco, que se trocam prendas adquiridas nas lojas dos trezentos, se vai festejar o fim do ano num baile a que chamam reveillon, com passas de Alicante e espumante da Bairrada. E, ainda, que se levam as crianças ao circo para se divertirem com os animais amestrados e se rirem da incorrigível burrice dos palhaços. Puras, inocentes, ingénuas de todo as nossas criancinhas!

Não fosse assim e já se teriam apercebido que o circo começa este ano mais cedo. Ou melhor, começou ontem e vai prolongar-se por aí fora, até quase ao limiar da primavera. Os animais amestrados pouco variam: os dinossauros estão extintos, os elefantes estão em vias disso e são caros, os frangos de aviário são abatidos e pendurados pelas pernas, num gancho de talho, antes de terem tido tempo para aprender a mais simples habilidade. Os palhaços, bem vistas as coisas, também são sempre os mesmos. Fizeram da pantomina a sua profissão, repetem exaustivamente as mesmas graças que já não fazem rir, sopram desafinadamente flautas que não são mágicas, não têm nem coragem nem fôlego para soprar um trombone.

E desde ontem que insistentemente estes artistas rejeitados pelo circo Mariano desfilam pela arena depois do Dr Sampaio, empossado na condição de mestre-de-cerimónias, ter anunciado o programa do espectáculo. Que, como é de uso salientar-se, pode sofrer alterações por motivos imprevistos, ser protelada a hora ou mesmo a data de realização sem que, como também é hábito, o Zé pagante tenha direito a reclamar qualquer reembolso ou, ao menos, a bufar.

Parte do elenco mantém-se silencioso, sem dizer palavra, limitando-se a fazer caretas, envergar máscaras de espanto e olhar para a luz dos projectores enquanto alisa os cabelos, disfarça a gordura da brilhantina e espera pela mira das câmaras. As graças ou os comentários são pronunciados em privado e mesmo assim ao ouvido para que deles não sobre nem boato.

Outros assumem-se como novos e inspirados comediantes só porque envergam um farrapo novo em que se vê a etiqueta de uma qualquer marca espanhola e se divisa ainda o pesponto do alinhavo. Novidade de uns é dizer que estão sempre prontos para governar. E impavidamente dizem-no sérios, sem um sorriso ou um trejeito, com o fingido ar de quem fala verdade e a quase certeza de serem mais acreditados do que Cristo. Coitados, que para além da farpela nos não transmitem novidade nenhuma, porque de há muito sabemos disso.

Outros ainda, afirmam-se prontos para a batalha, quase que se ouve o estrondo da metralha, amanhã sentir-se-ão epicamente a marchar pelas ruas da cidade tomada, entoando cânticos, pronunciando discursos e erguendo muros de cimento armado. Cujas ruínas depois, daqui a uns anos, hão-de constituir disputada recordação e ser solenemente expostas em sarcófagos a construir na Cova da Iria.

Todos, invariavelmente, se dizem protagonistas da mudança. Responsáveis de mais um começo para os portugueses, sempre forçados a começar a partir dos destroços que lhes deixam. Cansados de alternâncias e desalternâncias, gastas e regastas, como o orçamento. O elenco anterior, afirmam, não tinha legitimidade e, quando assim é, os artistas arrastam-se. O que leva os portugueses a saber que o elenco era constituído por ilegais imigrantes de leste, sem licença de residência e autorização de trabalho. Coagidos a moverem-se a coberto da noite e da sombra vertida pelas paredes, arrastando-se para fora do alcance visual da polícia de fronteiras. Para não serem repatriados.

É o circo! Com macacos amestrados, corvos a recitarem sonetos de Camões, porcos a andar de bicicleta, eunucos a engolir fogo e a caminhar sobre arames, amarrados por um cordel. Malabaristas a fazer desaparecer relógios dos pulsos e a conseguir o sumiço repentino das carteiras e dos recheios. Como sempre, os bilhetes são caros. Todos acabamos a chorar o mau destino dado ao dinheiro mal gasto.

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