Porto Vivo
Com pompa e circunstância nasce hoje, formalmente, a Porto Vivo - Sociedade de Reabilitação Urbana. Assiste ao parto o próprio presidente da República, auxiliado por alguns membros do governo, e espera-se que não venha o Dr Rio reivindicar a respectiva paternidade nem o Dr Menezes a correspondente maternidade. Depois da polémica que antecedeu o parto espera-se que o nascituro venha robusto e possa crescer robusto. Que tenha os cuidados de uma mãe extremosa e que essa mãe apenas possa ser a cidade. A cidade ela própria, sem representantes e sem representados, instituição sem estatuto jurídico, sem privilégios e sem obrigações a que não corresponda nenhum retorno. Que não tenha outro propósito e outra função que não sejam o de ser mãe com a inerência de conceber os filhos, de os parir e de tratar deles para que possam ter futuro. Um melhor futuro do que o nosso, um melhor futuro do que aquele que vamos deixando escapar por entre os dedos para os nossos próprios filhos.
Mas o acto é um acto cercado de vazio político, que não anuncia projectos reduzidos ao pragmatismo da acção concreta, que se fica muitas vezes pela vulgaridade do politicamente correcto, a que não corresponde nada e de onde se não pode esperar coisa nenhuma. Ainda o Dr Sampaio não deu as duas habituais palmadas nas nádegas da criança e já as críticas e as recriminações se sucedem. Nuno Cardoso, na ânsia de ser candidato à próxima vereação, faz uso da interminável duração das pilhas Duracell que se vendem por aí: não se lhe acaba a carga, mantém-se como um sempre-em-pé irredutível e teimoso. Salientando que a SRU não vai resolver todos os problemas da Baixa, que mais importante do que ela seria conseguir a aprovação rápida dos projectos de requalificação de áreas comerciais, que foram necessários três anos para a constituir e que ele, em três meses, criou duas empresas municipais, que é necessária uma agenda cultural coordenada, se é que isto é alguma coisa. Ocorre-lhe por último, luminosamente, a ideia de um cartão de utente da Baixa, em oposição à terminologia actualmente prevalecente que refere o cliente a torto e a direito e a respeito de tudo e de nada. Não lhe ocorre uma ideia positiva, um conceito diferente, o embrião de um projecto que possa deitar-se à terra, germinar, crescer e dar frutos. É pouco! É mesmo muito pouco para tanta altura e tão desmesurada ambição.
Não se pense que vão melhores as coisas pelas cabecinhas dos que, como a pescada, antes de o ser já o eram. Joaquim Branco vai ser o presidente da comissão executiva da novel sociedade e concede hoje uma entrevista ao jornal Público que, no mínimo, deixa muitas dúvidas e imensas inquietações. Desde logo anuncia que se parte com atraso, o que não é uma fatalidade, é um atributo amplamente reconhecido, vulgarizado, a que mais ninguém hoje atribui a mínima importância. E anuncia o desejo de que se construa habitação na rua de Sá da Bandeira, junto à Praça de D. João I, e um hotel de charme - seja lá o que isso for - no passeio das Cardosas. Garante que as casas reabilitadas não terão preços especulativos, quando isso não pode nem deve ser garantido nem por ele nem sequer pela comissão a que presidirá. E confessa que lhe não repugna a ideia de ter habitação no mercado do Bolhão aludindo, de forma desnecessariamente pejorativa, aos fundamentalistas "que pensam que aquilo deve ser só para vender sardinhas". Invoca sem medida e sem critério o mercado como regulador natural e justo de todos os preços. Sabendo-se, como se sabe, que neste país e nesta cidade nunca nada houve de mais pura e desenfreadamente especulativo do que o sector da construção civil.
Não há projectos concretos, calendários, custos ou sequer propósitos. É tudo vago, é tudo desalentadoramente vazio, é tudo inutilmente político. A propósito de obras anteriormente feitas, em que se gastaram fundos públicos significativos, justifica o fracasso com a falta da figura surrealista de um gestor de centro urbano - seja lá isso aquilo que ele entender que deva ser. Nunca se fala nas pessoas, a não ser para referir que são velhas e que serão despejadas de habitações que ocupam há décadas, invocando uma lei do arrendamento que, seguramente, será a desgraça de muita gente e a solução de muito curtos e poucos problemas. E nada se faz, nada se conseguirá sem as pessoas. Esta cidade milenar, como todas as outras, foi construída por pessoas e para pessoas. Foi ao ritmo da sua respiração, à abnegação do seu esforço, ao seu sentido de progresso que ela cresceu pelo morro da Sé abaixo, pela beira rio, pelas encostas acima, até Paranhos. Não há projectos sem pessoas e nenhum vingará sem elas. A prova está no tal entaipamento da Viela do Anjo e do Largo do Colégio. Não foi a falta do hipotético gestor urbano que levou ao fracasso do projecto. Foi a falta de um projecto pragmático que tivesse pensado na zona como uma solução e não como uma moldura. Que apenas servisse para a fotografia. Que a criança que hoje nasce possa ter outra orientação, outro sentido de vida, outro futuro!
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