Dia de nevoeiro
É
manhã de sexta feira, dia feriado, as ruas desertas, a chuva intermitente, a
água escorrendo pelas paredes, pelos vidros, pelos corpos. Um nevoeiro
persistente e às vezes leve, ocultando apenas o que lhe interessa, a primavera
atrasada, os telhados encharcados, os portais das entradas. Quase a tacto, um
café com as mesas vazias e o chão limpo, como se ninguém hoje ainda tivesse
dado com ele e ousado entrar para um café. Não há nevoeiro lá dentro, apenas o
desconforto da excessiva ordem das coisas, nem papeis ou lixo pelo chão, os
tampos das mesas sem restos de açúcar ou pingos de café.
A
televisão ligada, tudo monocromático, o roxo da quaresma pendurado nos altares
das igrejas e no estuque dos tectos. O estúdio com figurantes circunspectos, a
sentir que o esforço não vale a pena, os aplausos são mais vazios do que nunca,
o dinheiro dos cachets arrecadado sem esforço, um pequeno complemento para as
reformas de miséria, mais um quilo de arroz e um pacote de esparguete, a míngua
adiada. Os apresentadores sem entusiasmo, não vale de nada tentar mudar o curso
do rio, depois deste ter transbordado das margens e arrastado sucatas,
utensílios e bocados humildes de vida, arrecadados ao longo de anos sempre
bissextos. Para eles, em agosto, há de ser verão em qualquer sítio, uma praia
deserta e de areia fina, águas verdes, a concentração de sal a arder nos olhos,
a água a parecer aquecida nas panelas de ferro fundido, arrumadas junto ao
calor cheiroso da lareira.
As
empregadas de pé, quietas e apreensivas, nada que fazer, os rostos fechados, as
luzes acesas, a China à espera dos lucros. A crise trouxe tudo o que há de
pior, tem as costas largas, os maridos no desemprego, os filhos em casa à
espera que a escola lhes dê uma côdea, mais do que a instrução que antigamente
preparava para a vida. O ministro que não dorme porque se afirma sensível,
preocupado com o estado social e o estado civil, não vá o processo de divórcio
levar-lhe uma parte significativa daquilo que só ele julga ter amealhado à
custa de muito e honesto trabalho. Vida ingrata, a obrigação de estar ao
serviço dos outros. Se lhe sobrar tempo, depois de estar ao seu próprio
serviço, vinte e quatro horas por dia, sem descanso semanal.
Amanhã
é sábado de aleluia, acaba a quaresma. O tempo vai continuar igual: chuvoso,
nevoento e triste, de vento soprando nas esquinas e virando contentores de
lixo. Não é tempo de meteorologistas, e também já não é tempo de compasso nas
ruas da cidade!
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