A democracia no fundo da gaveta
Há
muitos anos atrás, no tempo em que os animais falavam e tinham apenas duas
patas, não sei quem decidiu por si, para bem do nosso futuro coletivo, guardar
o socialismo no fundo da gaveta, fechá-la à chave com uma fechadura à prova de
qualquer violação – violação da fechadura, é melhor esclarecer! – e ir deitar a
chave ao mar, a algumas dez milhas da costa e a alguns 5.000 metros de
profundidade. De forma a que nem o Papa, direto mandatário de Deus nisto a que
chamam planeta Terra, a pudesse encontrar, mesmo que para isso contratasse
todos os aprendizes de espião, pagos pelo orçamento, e encomendasse todos os
pareceres ao escritório do Dr. Miguel Júdice.
A
democracia, que é, ao que se disse por aí, um regime do povo e para o povo, vai
disputando cada vez mais o fundo da tal famigerada gaveta, cada vez mais fundo,
cada vez mais trancada e à prova de violação – violação da fechadura, é melhor
voltar a recordar! – e, de todo, inexpugnável. Ainda ontem! No seguimento ou
não da aprovação na arena de São Bento de umas folhas de papel com palavras e
números a que não sei quem, pretenciosamente, chamou orçamento, uma pequena
parte do povo entendeu dirigir-se a quatro ministérios e falar ao respetivo
ministro. Que, perante dados públicos conhecidos e intervenções televisivas à
hora do telejornal, se presume que saibam falar, mesmo não dizendo coisas de
jeito.
Tanto
quanto sei, entraram pacificamente, não forçaram nada, não espancaram os
vigilantes de serviço, não gritaram impropérios contra a honra das mães ou das
mulheres dos ministros, não roubaram nem mesas nem cadeiras, não partiram coisa
nenhuma. Pediram apenas que sua excelência ouvisse as suas razões, de gente
vulgar, que tem de estar desempregada, não receber subsídios, de pagar renda de
casa, eletricidade, água, saúde, ensino, alimentar e vestir os filhos. Foram
ouvidos? Parece que não. Entregaram algum documento para que sua excelência o
lesse e, pelo contínuo de serviço, lhes mandasse algum recado ou alguma palavra
de conforto? Parece que também não.
Que
fizeram hoje, em uníssono, como se fossem apenas um, as pardas excelências dos
ministros? Que são, tanto quanto apregoa a democracia que mantêm refém no fundo
da gaveta, representantes do povo soberano, dizem eles. Convocaram o povo,
emitiram comunicados, pronunciaram-se na televisão, aplaudiram os intérpretes
da casa dos segredos, prometeram uma palavra ou uma missa pela alma de D.
Afonso Henriques? Não, nada disso! Representando o povo, usaram dessa condição
e mandaram reforçar a segurança dos respetivos ministérios. Exatamente para
isso, para se defenderem do povo que representam. Não vá este exceder-se nas
carícias e nos afagos!
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