Quantas lágrimas tem a noite?
Quantas
lágrimas tem a noite, para além da madrugada e do céu sem estrelas? Por entre a
inquietude do sono, todo o tempo me doeu o corpo e me chorou a alma. Até que se
apagasse a luz dos candeeiros e a chuva da manhã tardia desenhasse as ruas e
as esquinas, me sangrasse a alma e me chorassem os olhos, por entre o nevoeiro
que ensombra este vazio de ter-te ausente e longe. Um choro certo, sem paragem
nem interrupção, com a mesma ameaça amarela e verde com que pintam o mapa, como
se fosse uma nova descoberta do Brasil, a borrasca a adivinhar-se no ventre
destas nuvens escuras, a avisar que a chuva e as lágrimas são para continuar,
tão longe como o acaso do sol pondo-se a oriente deste mar aberto e longo, como
facas.
Ah,
e todo o cais é saudade nenhuma. O cais é uma doca seca a que não aportam
sonhos e de que não zarpam recordações, nem movimento, nem azáfama. Apenas
destroços empilhados, as madeiras com caruncho, os metais pasto lento da
ferrugem, nem silhuetas pairam no horizonte, longe ou perto. Pessoa foi
marinheiro em terra, aprendendo os termos e a arte na sua peregrinação pelas
tabernas da cidade, emborcando copos de vinho e cálices de aguardente, até
chegar solene e morto, o fígado feito em pedaços, ao lugar que merece no Mosteiro
dos Jerónimos, quase em flagrante delitro, uma carta para Ofélia a despontar-lhe
do bolso do casaco, um amor de deve e haver. A roda do leme sempre segura como
se fosse um copo, precioso pelo conteúdo, frágil pelos cacos espalhados no
convés.
A
Ode Marítima é uma viagem de circum-navegação sem rumo certo, sem os acidentes
e as perdas com que Magalhães teve de confrontar-se, sem bússolas nem
computadores, nem semana inglesa. Nem Villaret nem Viegas se atreveram a lê-la
de um fôlego, inteira e completa, dar-lhe o destino que a fizesse sair para
além da barra, cruzar os mares, aguentar os vendavais das noites sem estrelas e
sem norte, até depositar o resto dos destroços numa praia desconhecida,
habitada por coqueiros e águas cálidas, só gente feliz sem lágrimas. Que vidas
se escrevem nos poemas, que esperanças se mergulham em cada verso, que dia inteiro cabe em cada
livro?
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial