O Natal são dois dias
O
Natal são dois dias a que se chega, quando se chega, por todos os outros dias
de caminho agreste e íngreme, pés descalços sobre os gelos polares ou sobre as
areias escaldantes dos desertos, o sofrimento vergando o dorso, a angústia
presa à solidão triste e decadente de uma face velha e enrugada, a desesperança
perdida no fundo dos olhos encovados, o brilho perdido na distância percorrida
sem o apoio de um bastão. As civilizações modernas e solidárias, as guerras que
alastram e os lucros que geram, a proclamação dos direitos do homem e da
criança, uns e outros caídos mortos pela berma dos dias, à míngua de alimento e
de um só gesto de humanidade.
Num
ápice, o gume mortal de um ano que se festeja, champanhe de Reims em cristais
de origem impronunciável, os mesmos direitos do homem e da criança, vasculhando
os dejectos das mesas dos ditos mais favorecidos, à procura de um resto de
alimento que lhes dê vida por mais um dia, apenas um dia de cada vez, sem
paredes onde se pendurem calendários e onde os relógios de luxo presos ao pulso
sejam apenas adornos desconhecidos,
estranhos e inúteis.
Há
um rio de sangue que me corre pelo peito, que me sufoca, que me deixa secas
todas as lágrimas tristes e silenciosas que não são mais nem rio, nem estuário,
nem delta, nem do Okavango que, imenso, se perde conformado e silencioso sobre
as areias do deserto que é a África inteira. Tanta gente que não teve berço nem
sapatos, que não tem um pataco diário para sobreviver, que não teve um livro e
um destino. E que sucumbe ao golpe letal do punhal implacável que são as doze
badaladas da meia noite e uma dúzia de simbólicas passas de uva para dar sorte
a quem volteia nos salões de dança ao
som de sucessos efémeros e vazios.
O
Natal são dois dias, o Ano Novo são todos os outros. São nenhuns!
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