Domingo, Verão, 21 de Junho à sombra
Domingo, Verão, 21 de Junho
à sombra. Nível médio das águas do mar, Foz do Douro, Portinho da Arrábida,
Torricelli, pressão atmosférica, 76 centímetros de mercúrio, nenhum vento
norte. A areia fina já escalda sob os pés descalços, chinelos na mão, uma
toalha de turco estampado pendurada sobre os ombros, óculos escuros protegendo
os olhos da luminosidade por demais, sol alto. Higrómetros parados, quase sem
tripa, nenhuma humidade, nem relativa nem absoluta. António Gedeão morto, a
pedra filosofal sobre a campa rasa, Rómulo de Carvalho no desemprego, rejeitado
no concurso do ministro obtuso dos professores.
Nenhuma química, nem
orgânica nem hidrocarbonetos, só petróleo no Iraque. E a naftalina, sublimação,
directamente do estado sólido ao gasoso, Herberto Hélder feito nuvem, cirrus ou
lá que é isso, farrapos esparsos a trinta mil pés, para metros é só fazer as
contas ou percorrer a distância, a cadela Laika andou mais do que isso e morreu
sem chegar à lua, ainda o muro de Berlim não tinha sido construído para ser
derrubado, nem a Ângela do lado de lá tinha ousado atravessar a linha de
fronteira desenhada pelo arame farpado das baionetas pacíficas das Kalashnikovs.
Hoje sinto-me todo grego,
mais do que é costume todos os dias, com o preço da electricidade e a subida
dos impostos, bandeira toda azul e branca com uma cruz ao canto, Bruxelas uma
cidade colónia de Berlim, sem catedral e sem a confeitaria do Zé Natário,
forçando a cobrança de juros agiotas por solidariedade e tentando vender
gravatas aos turistas descalços que chegam famintos das escarpas do Peleponeso.
É preciso o aviso a tempo por causa do tempo, ler o que a vida curta deixou tempo
a que António Maria Lisboa escrevesse, ao menos Mário Cesariny de Vasconcelos
morreu de velho, puta da tuberculose.
As pessoas devem ser
conhecidas pelo nome todo, inteiro como elas, sem falta de bocados nem
contrapesos, mesmo que a rainha de Inglaterra possa tropeçar no seu, cair dos
sapatos abaixo, partir o nariz e ficar entrevada até à idade com que o senhor
Manoel de Oliveira voltou à Ribeira para filmar o Aniki Bóbó. Picasso assim,
sozinho, não é pessoa nem coisa nenhuma, parece nome de chulo a viver à custa
das prostitutas do Intendente. Pablo Diego José Francisco de Paula Juan
Nepomuceno María Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso sim, é nome
de pessoa, com direito a mais de setenta virgens para lá dos Pirenéus. Pode
sair a primeira para o Château de
Vauvenargues!
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