Hipotético responso de Fernando Pessoa a Santo António
Fica sabendo, Santo António,
sejas tu de Pádua ou de Lisboa, que eu sou anterior a tudo e que o mundo me
cabe inteiro e completo no número 4 do Largo de São Carlos, com o mar preso nos
dentes e o sol agitando as velas dos grandes navios que aportam aos cais.
Manuel da Fonseca, que não conheci por me terem julgado morto antes, e ainda
porque a estrada de Sintra não passa por Santiago do Cacém, garatujou algures
que antigamente o largo era o centro do mundo, uma perspectiva mínima de tudo,
que não vê para o outro lado da rua, nem para debaixo da mesa sobre a qual se
depositam os copos vazios de aguardente e os pensamentos com que encho o mundo
e o encafuo nos recantos mais íntimos da minha cabeça.
Encarcerado num caixote de
mármore no Mosteiro dos Jerónimos, sem o ter pedido porque não poderia pagar a
renda do quarto que me destinaram, e porque perderia do horizonte oblíquo em
que me penso, a silhueta burocrática de Ofélia, não me pude pensar e não me
pude dizer, todo para dentro de mim. Até à náusea, antes de Jean-Paul Sartre
atirar para os caixotes de lixo, onde as gaivotas procuram ramos de oliveira e
restos de comida, o prémio que lhe quiseram dar nos fiordes escandinavos. Tanto
mais que nem toda a cultura que bebo aos balcões das tabernas de José Maria da
Fonseca está disponível na limpeza obscena que encarde o Centro Cultural de
Belém, onde se conta com vizinhos a ler livros aos quadradinhos e se atropela a
minha querida língua portuguesa.
A noite passada, mais do que
encarcerado fui abstémio, e não cheguei à Mouraria por ter-me perdido no
caminho. Não atinei sequer com o rio de ideias que sobe para o castelo e que
inunda de luzes pequeninas as copas dos pinheiros plantados à entrada. Não
terei perdido muita ou importante coisa, nunca fui grande apreciador de sardinhas,
um peixe pequeno que voa muito acima das minhas possibilidades e que vive
atrelado ao elevador que sobe a calçada da Glória. Muito menos ainda quando
retiradas à força de cima das brasas em que se aquecem e depositadas sobre um
pedaço de broa feita de milho, um cereal que conheço do dicionário e que nunca
vi crescer no Martinho da Arcada, por mais poesia que escorresse das cadeiras.
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