8 de dezembro de 2015

Eu existo nos dias úteis

Eu existo nos dias úteis, com horário certo, como funcionário público preparado para a rotina do expediente no começo da semana, marcando o ponto às nove da manhã, a atirar-me à burocracia parada dos dias cinzentos nas vésperas do inverno, justificando os atrasos com os transportes que obedecem a horários apenas decorativos e inúteis. Agradecendo a compreensão incompreensível e magnânima do assessor que o ministro demitido me empurrou para chefe e a quem devo entregar a consciência e a fidelidade do voto, quando o país o indicar como sumidade pública, todo entregue à vocação divina de me lamentar a miséria e proteger a inutilidade, enquanto lhe cresce o saldo da conta bancária e a potência do automóvel que se abastece do meu bolso e lhe leva os filhos prendados às aulas de piano, o mestre superiormente diplomado em Viena.

Pontualmente tenho direito a um intervalo a que chamam para almoço, que não uso nem repito, não vá o tempo curto atrasar-me de novo para a marcação do ponto e o assessor recusar-me a justificação, porque a fome não desculpa coisa nenhuma, podendo até cair-me na fraqueza. Para além do alimento poder prejudicar a lucidez e o despacho para o atendimento da fila de velhos que se perfila à frente do balcão, o medo tremendo-lhes nas pernas bambas, o olhar mortiço transbordando passados e distâncias que os hão-de acompanhar até à cova, onde a morte sem romarias nem foguetes os há-de acolher, porque os crematórios levam mais caro do que os advogados que caçam fortunas no Brasil e rascunham leis no parlamento.
Um poema pode não ter métrica nem rima, pode até não apregoar a lucidez que Pessoa bebia a copo ao balcão das tabernas da baixa de Lisboa. Mas pode dizer merda e acabar com um ponto final. Como terminam a vida e as exéquias dos funcionários que esperam pelo sol de agosto sob o abrigo invernoso dos guarda-chuva. Merda, sou lúcido, eu também!


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