Eu existo nos dias úteis
Eu existo nos dias úteis,
com horário certo, como funcionário público preparado para a rotina do
expediente no começo da semana, marcando o ponto às nove da manhã, a atirar-me
à burocracia parada dos dias cinzentos nas vésperas do inverno, justificando os
atrasos com os transportes que obedecem a horários apenas decorativos e
inúteis. Agradecendo a compreensão incompreensível e magnânima do assessor que
o ministro demitido me empurrou para chefe e a quem devo entregar a consciência
e a fidelidade do voto, quando o país o indicar como sumidade pública, todo
entregue à vocação divina de me lamentar a miséria e proteger a inutilidade,
enquanto lhe cresce o saldo da conta bancária e a potência do automóvel que se
abastece do meu bolso e lhe leva os filhos prendados às aulas de piano, o
mestre superiormente diplomado em Viena.
Pontualmente tenho direito a
um intervalo a que chamam para almoço, que não uso nem repito, não vá o tempo
curto atrasar-me de novo para a marcação do ponto e o assessor recusar-me a
justificação, porque a fome não desculpa coisa nenhuma, podendo até cair-me na
fraqueza. Para além do alimento poder prejudicar a lucidez e o despacho para o
atendimento da fila de velhos que se perfila à frente do balcão, o medo
tremendo-lhes nas pernas bambas, o olhar mortiço transbordando passados e
distâncias que os hão-de acompanhar até à cova, onde a morte sem romarias nem
foguetes os há-de acolher, porque os crematórios levam mais caro do que os
advogados que caçam fortunas no Brasil e rascunham leis no parlamento.
Um poema pode não ter
métrica nem rima, pode até não apregoar a lucidez que Pessoa bebia a copo ao
balcão das tabernas da baixa de Lisboa. Mas pode dizer merda e acabar com um
ponto final. Como terminam a vida e as exéquias dos funcionários que esperam
pelo sol de agosto sob o abrigo invernoso dos guarda-chuva. Merda, sou lúcido, eu
também!
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