40º dia - Dia mundial do livro
Ao quadragésimo dia estou
que nem posso, tão empanturrado como se tivesse comido sozinho uma dose inteira
de cozido à portuguesa, valendo-me o litro de tinto para o empurrar. Arroto tão
sonoramente que eu próprio me distancio socialmente de mim para me proteger, se
ressonar durante o sono adivinho que haverá um concerto nocturno que seguramente
me não vai deixar dormir e imagino o desastroso resultado da insónia. Os olhos
esbugalhados a saírem-me das órbitas, raiados da cor do vinho, prontos a chorar
pelo dia seguinte, tendendo para o infortúnio e para a tragédia, desejoso que
termine a quarentena para que eu possa sair à rua a reparar nos cidadãos asseados
e limpos que acompanham os cães e não lhes apanham os dejectos, empurrando-os artisticamente
com a biqueira do sapato para os bastidores, abaixo do lancil. Não fosse este
recolhimento forçado e já eu teria acertado no euromilhões pelo menos duas
vezes ou até mais, acho que devo mover uma irrevogável acção ao estado a
solicitar uma indemnização que me compense do prejuízo e me deixe finalmente
viver abastadamente de papo para o ar numa estância balnear das caraíbas,
rodeado de copos de mojito com intenso sabor a hortelã e de livros de Ernest
Hemingway, assim como se fosse o idoso e o mar, a puxar um espadarte por um fio
amarrado a uma cana de pesca.
Enquanto faço a mala para a
viagem à grande muralha da china reparo por acaso que entra na travessa o rapaz
que perdeu o cavalo por falta de identificação. Empurra um carrinho de mão
cheio de traquitanas e uma enorme pilha de livros, e atrás dele caminha uma
escada de alumínio, muito erecta, capaz de chegar ao terraço do terceiro andar,
que se encosta à parede do prédio fronteiro, talvez por cansaço ou falência da
vontade. O rapaz veste umas calças de ganga azul, penduradas ao pescoço por uma
alça que quase o degola, com um grande remendo amarelo no cu, mas que não deixa
ver nada para dentro e que lhe protege a intimidade e uma marca da vacina
contra a varíola que apanhou em criança. Do espaço desce por milagre uma faixa
de pano-cru, com três metros de comprido e para aí um metro e vinte de largura,
talvez menos dois centímetros mais milímetro menos milímetro, que se fixa à
parede como se a mão de Deus, em pessoa, lhe indicasse o caminho e o local
exacto para fixar morada e espetar os pregos. Da chaminé uma gaivota que acaba
de despertar faz um sinal ao rapaz, como para lhe dizer que está tudo pronto,
que pode subir a escada e que não corre perigo de bater com a cabeça no céu.
O rapaz sobe a escada cautelosamente,
degrau a degrau, para não rasgar o remendo das calças, carregando uma lata de
tinta na mão esquerda e um pincel bem largo no bolso da camisa, que espalha na
travessa o perfume suave e meigo das flores de tília no princípio do verão.
Para ao nível da faixa de pano e segreda à escada quaisquer instruções que não
consigo entender, mas ela desloca-se para a ponta esquerda do tecido e o rapaz
começa a desenhar-lhe letras num cursivo perfeito, de cor tão vermelha que parece
uma melancia por dentro mas sem pevides nenhumas. E escreve “dia mundial do
livro – leia. aulas grátis e ao domicílio”. Depois olha para o resultado do
trabalho e limpa as mãos às calças, satisfeito com o resultado da obra. Acena
ao bando de gaivotas pousado no telhado e este grasna um aplauso colectivo que
enche a rua com o som estereofónico da quadragésima sinfonia de Mozart, um
velho amigo de minha avó materna que ainda andou comigo ao colo, ainda eu não
usava bibe nem andava na escola.
Batem-me à porta e corro a espreitar quem será,
antes de responder e entreabrir apenas uma nesga com quatro dedos de largo. É
afinal uma figura que conheço das histórias e das esplanadas à beira mar nos
crepúsculos de verão. Traja uma armadura de bom corte, justa e refulgente, que a
protege por inteiro, deixando-lhe apenas uma abertura ao nível dos olhos, para
ver o caminho e apontar a lança fatal ao coração do inimigo. Tem um perfil
esguio e imponente, soberbo e nobre, e se se lhe abrir a torneira certamente
sairá sangue azul ou extracto de salsaparrilha. Estende-me o cartão-de-visita
numa pequena bandeja de prata que tira do bolso de trás, pego-lhe com uma pinça
que trago pendurada ao pescoço, não é por nada, mas o raio do cartão pode estar
infectado, nunca se sabe, o seguro morreu de velho. Leio num cursivinho tão
perfeito que podia ter sido escrito pelo rapaz que perdeu o cavalo e que agora
anda a distribuir livros pelas casas de todos os vizinhos:
Dom Quixote de la Mancha
Mandatário de Miguel de
Cervantes Saavedra
Aulas de leitura ao
domicílio para escritores encartados
Seja bem-vindo senhor dom
quixote - o senhor, dom sancho e dom rocinante - neste dia mundial do livro, em
que toda a gente sabe escrever e ninguém sabe ler. Espero que tenha feito boa
viagem e que até o burro tenha cumprido o horário, sem atrasos nem desvios para
o pasto, que a fome é negra. E já agora, que também traga nos alforges a
cartilha do senhor joão de deus se, como bem penso, tiver entrado pela
fronteira de Ayamonte. E que no reino lhe deem bom uso, que tão precisada está
de ter por estes sítios de deus.
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