Trigésimo nono dia
Acordei hoje às seis horas
da manhã, ainda a noite me escorria pelas paredes do quarto e o dia vinha, a
passo, no outro lado do mundo. Fumegava de cansaço o candeeiro em frente da
janela, arfando de tão longa noite de trabalho, dando luz sem interrupção para
o silêncio lúgubre da travessa e para a ausência de bêbados e pederastas
encolhidos no frio granítico dos portais. Por razões de segurança durmo com as
janelas fechadas e colei nos vidros de cada uma um sinal de sentido proibido,
convenientemente virado para fora para que seja visto e respeitado. Até ao
momento nem a polícia nem a guarda me comunicaram quaisquer ocorrências em que
se desse caso de prevaricações, de um modo geral todos os passantes respeitam
civicamente as orientações do estado de emergência e temem o peso imprevisto do
cassetete. E isso me dá maior tranquilidade para o sono e muito maior
disponibilidade para o sonho.
Espreitei a rua pela mão-travessa
que para isso deixo aberta no estore, o resto disfarça-me a curiosidade e
esconde-me dos olhares indiscretos dos transeuntes que passam com a cara
coberta por máscaras e as mãos envoltas em luvas que se usam para repartir as
tarefas domésticas e lavar a louça do jantar. Há um autocarro que passa, iluminado
por dentro, com os bancos todos vazios, cumprindo a dupla função de dar
utilidade às paragens e de acordar quem dorme sozinho. E ainda uma passadeira
pintada no pavimento, de listas paralelas, parecendo uma zebra deitada com as
pernas encolhidas onde, antes de tudo isto, atravessavam os peões carregados
com os sacos de compras e os pardais à procura de perdidos grãos de arroz que
lhes coubessem no papo. Ainda uma fileira de vasos de cores variadas onde,
durante a madrugada, floriram rosas de várias cores, brancas, amarelas,
vermelhas. Oscilam com a deslocação do ar que o autocarro provoca, agitam-se
desesperadamente, pedem-lhe que pare e não são atendidas. Hão-se seguir no
autocarro seguinte, sempre cheio de tulipas a cheirar aos canais de Amesterdão,
de pernas cruzadas como se se oferecessem nas montras das lojas de sexo das
ruas da holanda. Não lhes agrada a companhia, são frios os ares daquelas
paragens e mais ainda as manápulas dos homens fumando erva nas praças e
apertando os seios púberes das adolescentes altas e louras que procuram
emprego.
Há um rapaz que atravessa
fora da passadeira, puxando pela arreata um cavalo branco, de raça lusitana,
com quatro rodas e o aspecto fatigado de ter abandonado a arena vazia de uma
praça de touros. Uma gaivota que voa baixo grasna-lhes mesmo por cima e assusta
ambos, o rapaz agarra-se à barriga, como se se tivesse mijado todo, e o cavalo
dispara coices para todos os lados, deitando abaixo um dos vasos e magoando-se
nos espinhos das roseiras. Azar que ambos tiveram, porque há um guarda-nocturno
que pelo outro passeio vem em sentido contrário, como prova de que a profissão
não está extinta e de que o livro de multas ainda colhe proveito e contribui
para os cofres públicos. Manda-os parar e atravessa a rua para os interpelar e
pedir-lhes a identificação. O rapaz reclama mas estende-lhe o cartão de cidadão
caducado há três meses e que já nem serve para apresentar ao porteiro da sala
de cinema e assistir ao filme os dez mandamentos, que já devem ser alguns
quinze, fora aquele de cobiçar a mulher do próximo, porque agora toda a gente
se deve manter afastada por questões de distância social, é assim que vem no
catálogo e que aconselham os ministros. O cavalo levanta a pata dianteira do
lado direito e mostra a ferradura, ainda a brilhar de nova, parece de prata,
por ter sido ferrado no dia anterior na oficina de um ferrador que morreu em
finais do século passado e que não deixou descendentes nem conta bancária.
Sem me voltar falo para o
lado, para que o meu amigo africano que fundeou numa ilha dos açores, a caminho
da sua descoberta da américa e das torres da quinta avenida, me possa ouvir.
Mas ele não me responde, vida de marinheiro é sempre a mesma coisa, ou se faz
de surdo ou se embebeda. Chegados a novo porto são sempre mulheres e vinho, gin
tónico e whisky escocês de doze anos, apesar de ser proibido fumar em recintos
fechados e nas escadas de acesso aos ancoradouros das marinas. Sozinho nada
posso fazer nem pelo rapaz nem pelo cavalo, tanto mais que nem bebo. E o agente
da ordem multa o rapaz, como é de lei e de justiça, e apreende o cavalo que não
lhe cabe no bolso. Assim sendo tem de prender a arreata ao cinto com que segura
as calças à volta do abdómen e pedir ao cavalo que, por favor, o acompanhe até
à esquadra mais próxima, onde sempre terá o conforto da estrebaria e lhe será
servido um fardo de palha numa manjedoura de prata. Para que depois possa ser
identificado e voluntariamente prestar declarações em auto oficial, a
encaminhar para a justiça. Porque vivemos num estado de direito, está tudo sob
controlo e a democracia funciona em pleno!
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