22 de abril de 2020

Trigésimo nono dia


Acordei hoje às seis horas da manhã, ainda a noite me escorria pelas paredes do quarto e o dia vinha, a passo, no outro lado do mundo. Fumegava de cansaço o candeeiro em frente da janela, arfando de tão longa noite de trabalho, dando luz sem interrupção para o silêncio lúgubre da travessa e para a ausência de bêbados e pederastas encolhidos no frio granítico dos portais. Por razões de segurança durmo com as janelas fechadas e colei nos vidros de cada uma um sinal de sentido proibido, convenientemente virado para fora para que seja visto e respeitado. Até ao momento nem a polícia nem a guarda me comunicaram quaisquer ocorrências em que se desse caso de prevaricações, de um modo geral todos os passantes respeitam civicamente as orientações do estado de emergência e temem o peso imprevisto do cassetete. E isso me dá maior tranquilidade para o sono e muito maior disponibilidade para o sonho.

Espreitei a rua pela mão-travessa que para isso deixo aberta no estore, o resto disfarça-me a curiosidade e esconde-me dos olhares indiscretos dos transeuntes que passam com a cara coberta por máscaras e as mãos envoltas em luvas que se usam para repartir as tarefas domésticas e lavar a louça do jantar. Há um autocarro que passa, iluminado por dentro, com os bancos todos vazios, cumprindo a dupla função de dar utilidade às paragens e de acordar quem dorme sozinho. E ainda uma passadeira pintada no pavimento, de listas paralelas, parecendo uma zebra deitada com as pernas encolhidas onde, antes de tudo isto, atravessavam os peões carregados com os sacos de compras e os pardais à procura de perdidos grãos de arroz que lhes coubessem no papo. Ainda uma fileira de vasos de cores variadas onde, durante a madrugada, floriram rosas de várias cores, brancas, amarelas, vermelhas. Oscilam com a deslocação do ar que o autocarro provoca, agitam-se desesperadamente, pedem-lhe que pare e não são atendidas. Hão-se seguir no autocarro seguinte, sempre cheio de tulipas a cheirar aos canais de Amesterdão, de pernas cruzadas como se se oferecessem nas montras das lojas de sexo das ruas da holanda. Não lhes agrada a companhia, são frios os ares daquelas paragens e mais ainda as manápulas dos homens fumando erva nas praças e apertando os seios púberes das adolescentes altas e louras que procuram emprego.


Há um rapaz que atravessa fora da passadeira, puxando pela arreata um cavalo branco, de raça lusitana, com quatro rodas e o aspecto fatigado de ter abandonado a arena vazia de uma praça de touros. Uma gaivota que voa baixo grasna-lhes mesmo por cima e assusta ambos, o rapaz agarra-se à barriga, como se se tivesse mijado todo, e o cavalo dispara coices para todos os lados, deitando abaixo um dos vasos e magoando-se nos espinhos das roseiras. Azar que ambos tiveram, porque há um guarda-nocturno que pelo outro passeio vem em sentido contrário, como prova de que a profissão não está extinta e de que o livro de multas ainda colhe proveito e contribui para os cofres públicos. Manda-os parar e atravessa a rua para os interpelar e pedir-lhes a identificação. O rapaz reclama mas estende-lhe o cartão de cidadão caducado há três meses e que já nem serve para apresentar ao porteiro da sala de cinema e assistir ao filme os dez mandamentos, que já devem ser alguns quinze, fora aquele de cobiçar a mulher do próximo, porque agora toda a gente se deve manter afastada por questões de distância social, é assim que vem no catálogo e que aconselham os ministros. O cavalo levanta a pata dianteira do lado direito e mostra a ferradura, ainda a brilhar de nova, parece de prata, por ter sido ferrado no dia anterior na oficina de um ferrador que morreu em finais do século passado e que não deixou descendentes nem conta bancária.

Sem me voltar falo para o lado, para que o meu amigo africano que fundeou numa ilha dos açores, a caminho da sua descoberta da américa e das torres da quinta avenida, me possa ouvir. Mas ele não me responde, vida de marinheiro é sempre a mesma coisa, ou se faz de surdo ou se embebeda. Chegados a novo porto são sempre mulheres e vinho, gin tónico e whisky escocês de doze anos, apesar de ser proibido fumar em recintos fechados e nas escadas de acesso aos ancoradouros das marinas. Sozinho nada posso fazer nem pelo rapaz nem pelo cavalo, tanto mais que nem bebo. E o agente da ordem multa o rapaz, como é de lei e de justiça, e apreende o cavalo que não lhe cabe no bolso. Assim sendo tem de prender a arreata ao cinto com que segura as calças à volta do abdómen e pedir ao cavalo que, por favor, o acompanhe até à esquadra mais próxima, onde sempre terá o conforto da estrebaria e lhe será servido um fardo de palha numa manjedoura de prata. Para que depois possa ser identificado e voluntariamente prestar declarações em auto oficial, a encaminhar para a justiça. Porque vivemos num estado de direito, está tudo sob controlo e a democracia funciona em pleno!


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