28 de abril de 2020

Hoje acordei com um pardal na almofada



Hoje acordei com um pardal na almofada. Que impertinente, sem me dar tempo para esfregar os olhos, disse – piou, porque é o pio que é a voz dos pardais:

- Se não acordasses, fazia-te o ninho atrás da orelha.

Com o meu mundo ainda reduzido à dimensão da ramela, retorqui-lhe:

- Fritava-te!

Com um pio de escárnio, respondeu-me, esvoaçando e rindo:

- Eu sou um pardal, não sou um burro. Além disso, sou previdente. Já passei pela tua cozinha e vi que tens lá uma frigideira, mas não tens tem nem azeite, nem óleo. Queres que te abra as janelas, para entrar luz, a ver se acordas melhor?


Sem aguardar por resposta minha, ergueu as persianas e um manto de sol espalhou-se sobre a cama. Esbarrou contra o vidro, cambaleou, aguentou-se a golpe de asa, inquiriu:

- Que tens tu na janela, que vejo o sol e as nuvens do outro lado da rua e não consigo voar até lá? Quase caio ao chão, morto, como se chocasse com um comboio ou com uma ave de rapina?

E, reparando nos livros que repousam a meu lado, sobre o colchão, fechados no último sono, inquire-me, piando fino:

- Andas a ler tantos livros ao mesmo tempo? És escritor?

- Tinha de te apanhar, sacana de passarito, pequeno e ignorante. Quem lê livros é um leitor, quem os escreve é um escritor, há vários dicionários na sala. Quer dizer, o escritor escreve-os para que o leitor os leia. São tarefas diferentes, entendes? Ninguém faz o trabalho dos outros, mas a literatura não é para pássaros. E os dicionários também não.
Nisto, faltou-me a almofada e o pardal. Assim vão quarenta e cinco dias, confinado ao espaço da gaiola. Sem espaço para o voo e sem grão que me empertigue o papo!


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