Um ribeiro a correr ao lado da cama
Hoje acordei com um ribeiro
a correr-me ao lado da cama, com um moinho plantado na sua margem esquerda,
acolhido sob as copas dos salgueiros. E no alto, entre a folhagem, um ninho de
melros com as crias piando de fome. Terra fora, as margens verdes de ervas
rasteiras, trevo, luzerna, outras de que não sei o nome. O chilreio dos
pássaros, o restolho dos rebanhos, o canto distante e próximo dos galos. Os
chocalhos das ovelhas a caminho do pasto, um ou outro latido dos cães de
guarda, o eco sibilino de um assobio. A água límpida, transparente, saltando
por cima de algumas pedras, alimentando as mós. O ruído cavo e monótono destas,
triturando o grão, deixando lentamente um lençol branco de farinha. E o silvo
agudo de um apito de comboio que me desperta, que deixa um rasto de luz na
penumbra do quarto, que faz desaparecer o ribeiro e o moinho.
Confinado há quarenta e oito
dias, tenho transformado a minha vida e a minha casa. Libertei-me de amarras e
de preconceitos, abri as janelas aos pássaros e à imaginação, a sobrevivência
não convive bem com o isolamento. Se não se pode ir ao supermercado ou à
mercearia, é preciso inovar, fazer a horta, tratar das couves, protegê-las dos
parasitas, dar-lhes certificado de qualidade. Biológica, como é amigo do
ambiente e do estômago. Há dias amanheci com um nutricionista à cabeceira,
têm-me sido uteis as suas recomendações sobre a variedade da dieta em tempos de
clausura. Tenho-me confrontado com a seca, a falta de chuva tem-me chegado a
casa, vinda directamente do kalahari. Finalmente esta noite choveu e estão
encharcadas as terras de cultivo e a varanda onde penduro a roupa a secar.
É um espaço diminuto o da
varanda. Por baixo do estendal da roupa fica um tanque de cimento, chumbado ao
chão para resistir aos terramotos e às investidas das lavadeiras. Serve na
perfeição para lhe semear no fundo um quilo de arroz agulha, que é o de que
gosto mais, mesmo que o carolino seja melhor e mais patriota. Parece que também
se dá no baixo mondego, quando este abre os braços para o mar e se enche de
arrozais e de canoas. Espalho-o no fundo, tão regularmente como mo permite o
improviso de fazer tudo a olho. Cubro-o com uma curta camada de água e o tempo
ameno, a tender para quente, ajudará à germinação. Dentro de uma semana terei
um arrozal no tanque e terei de me manter atento, mondá-lo, libertá-lo de ervas
daninhas. Esquadrinhei o chão em três pequenos quadriláteros, a um canto semeei
um alfobre de alfaces, no do meio um canteiro de couve lombarda – ainda hei-de
fazer um cozido à portuguesa, se conseguir criar porcos na despensa e montar um
fumeiro na cozinha – e no último espalhei, sob uma suave cobertura de terra,
bocados de batata de semente.
Abri a janela da varanda
para lhes dar ar purificado pelos decretos da pandemia e deixar entrar o sol
que por aqui passa a caminho do poente. Ao sol tudo medra, não invertam a ordem
de nenhuma letra. Do lado de fora da janela pendurei um vaso que por
inutilidade ocupava o parapeito. Semeei-lhe sementes de girassol, adoro o porte
erecto dos girassóis, a sua corola tão regular e amarela, a utilidade reservada
às sementes. Se a calamidade não lhes prejudicar o crescimento, ainda sou capaz
de descobrir como se faz o óleo e aproveitá-lo para a fritura das batatas.
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