6 de fevereiro de 2021

À volta da praça mais rica do Pais

 

Sendo sábado, estando reformado e não tendo sido mobilizado como aquele coitado daquele comandante reformado da marinha, para a campanha de vacinação contra a convid, decidi-me esta manhã por uma ida atá à baixa da cidade. A cidade está deserta, deserta e solidária, porque também está fechada e isso é o acto mais solidário que eu consigo imaginar. As lojas fechadas protegem naturalmente quem ganha pouco contra o desperdício e o mal gasto. Não há nada mais condenável do que ver um sem abrigo gastar em vinho de pacote, sem qualidade nenhuma, as moedas que poderiam comprar o pão para conforto dos estômagos das crianças mais desfavorecidas – reparem na expressão politicamente correcta: mais desfavorecido é completamente distinto de irresponsável ou de gandulo.

Fui devagar, ao ritmo que defini para a minha ténue vontade, e à lenta cadência que me impõem as minhas pernas, cansadas das caminhadas e trôpegas dos anos. Há vantagens em percorrer lentamente uma cidade deserta, desde logo por ser uma cidade disciplinada. Ninguém buzina, não se insulta ninguém, não se regateiam preços ou contesta a frescura do pescado. Creio mesmo não ter ouvido, uma só vez, alguém apelidar a vizinha mais próxima de sua badalhoca. Toda a pouca gente que andava na rua, não sei a fazer o quê, usava peças de vestuário habilidosamente decoradas com incomparáveis bordados da madeira. Cheguei a lamentar não ter ainda o Alberto João como governador da região, só para lhe poder ver a brancura das cuecas e o requinte dos bordados da braguilha.



Fui assim, sem pressas, dar à praça mais rica do país, de há tempos dando pelo nome vulgar de batalha, não sei se dos atoleiros ou do buçaco onde, parece, um tal napoeão não sei de que parte, mandava os seus generais pernoitar em mosteiros - creio que separados das diligentes religiosas, e passar férias. Está muito mudada a praça da batalha, e toda a ostentação da sua anterior riqueza. Desapareceu o cinema águia de ouro, onde agora funciona uma pensão qualquer, a preços de qualquer vila africana, sem ruas asfaltadas nem iluminação eléctrica. O célebre café leão de ouro é uma ruína, quase reduzida a um muro em equilíbrio precário, onde já se não servem nem meias de leite nem pingados, acompanhados com meias torradas com pouca manteiga. Finalmente, até o superlativo mijadouro desapareceu da arquitectura da praça e nem as portas foram preservadas na nobre esquina que ocupava. Ao canto estratégico que dominava sucedeu uma vitrina, de uma casa comercial também fechada e onde, ao que parece, se vendem roupas femininas, incluindo calcinhas vermelhas e soutiens a que falta demasiada copa para o conteúdo que hão-de albergar, demasiado avantajado para a sofreguidão de muitas mãos.

Está, ao menos, em reabilitação, o cinema batalha, aquele em que passaram as mais inverosímeis cenas, em que ninguém nunca pode acreditar nem duvidar. Cercado por um longo taipal onde detalhadamente se conta a história do edifício, desde o início ao futuro glorioso que se adivinha e onde, crê-se, ao vivo e a cores hão-de ser ressuscitados os ainda recordados irmãos lumière que a história retém não sei a que propósito. Hão-de voltar a passar as cenas de sempre, que só podem passar no batalha, E até o Xico Fininho há-de vir da cantareira, de eléctrico, carregando a sua velha viola a tiracolo, só com merda na algibeira. O taipal conta tudo e permite imaginar o que não conta, O despovoamento do resto da cidade, com a rua de 31 de janeiro transformada naquilo que sempre foi: uma data relativa a uma tentativa vencida de implantação da República em 1891, nem o glorioso Xicão do CDS/PP tinha sido baptizado com água benta na moleirinha e uma pitada de sal na afiada ponta da língua. A par da maqueta ficava bem uma fotografia do edil, Dr Rui Moreira, com o seu perfil fino e elegante, de gravata e chapéu alto. E uma bigodaça sarcástica, à maneira do senhor Eça de Queiroz, que também andou por ali perto, a tomar o sabor ao café de saco do falido Majestic. Não prestando atenção às muitas badalhocas que, à época, batiam os tamancos nas pedras da calçada.

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