Jesus converte-se à globalização e ao transporte aéreo
Quando eu era miúdo Jesus
chegava ao Bairro de São João em Dezembro, por alturas do Natal. E, ano após
ano, era por sistema o padre Abel que previamente tratava das boas vindas e do
alojamento do próprio e da curta comitiva. A um dos lados da nave principal da
igreja mandava erigir um presépio provisório, sem licença da câmara, acolhido
sob a telha marselha do templo para, de alguma forma, o resguardar do nocturno
frio exterior e da frequência das chuvas do planalto central do Huambo. E ainda
do inclemente céu azul e definitivo que povoa os dias de África. Era pequena a
comitiva: o próprio, a mãe com a criança ao colo, o padrasto carregando a enxó
e a plaina, um burrito sem moscas, manso e submisso e uma vaquita que se
mantinha teimosamente de cabeça baixa, debicando a palha seca onde o menino
repousava de perninhas erguidas, róseas e rechonchudas.
Nunca soube como chegara
porque no adro nunca vi carroças ou caravanas que o burro e vaca pudessem ter
puxado desde muito longe e o assunto fica por esclarecer. Isto porque o próprio
padre Abel, que jogou à bola connosco nas traseiras da igreja, que casou mais
de metade das pessoas da minha geração e depois lhes baptizou os filhos, quando
era mais preciso, resolveu deixar-nos a correr sozinhos atrás da trapeira e
decidiu recolher-se a um descanso em que não há toques de alvorada às seis
horas da manhã. Mas, pela situação do bairro e da própria igreja, era de
presumir que a comitiva viesse dos lados do Bailundo ou do Sambo, tanto fazia,
a estrada era de terra batida dos dois lados. Ficava apenas a dúvida se a mesma
se deteria no Cuando para banhos nas águas da barragem e para que se
dessedentassem o burro e a vaquita.
Agora Jesus chega no Verão,
em plena canícula do mês de Julho, e não há gps que lhe valha para acertar nas
coordenadas. Vai parar a um qualquer descampado, cercado de arame farpado, onde
meia dúzia de fiéis de cabeça coberta estenderam lençóis vermelhos festejando o
seu regresso a casa, Como se o Bairro de São João, mesmo com o padre Abel
ausente, pudesse deixar cercar o recinto da igreja com arame farpado e permitir
a mudança do presépio fosse para onde fosse. Mesmo que a comitiva, carregando
mochilas às costas, viajasse de avião e viesse das vizinhanças da terra do papa
e se furtasse às câmaras de televisão como São José se furtava aos microfones do
Rádio Clube do Huambo e do devoto Sebastião Coelho.
Depois é de todo
inadmissível a violação da privacidade de Jesus, nem no Bairro de São João
alguma vez a Pide exigiu à comitiva o preenchimento do questionário habitual
para saber de onde vinha, quanto tempo ia ficar e se trazia dinheiro suficiente
para as despesas da estadia. Quanto mais vigiar-lhe as horas, revelando o local
e o momento em que atravessava a fronteira e escarrapachar fotografias do avião
com a legenda a dizer “Jesus está aqui dentro”. Só faltando mesmo acrescentar
que lavava as mãos, punha a máscara, contornava os domínios do vírus ou mesmo
qualquer pormenor mais íntimo e recatado que o bom senso e a devoção impedem
sequer de mencionar. Também é verdade que “O Planalto” não era o “Correio da
Manhã”, só se publicava duas vezes por semana e todo a uma só cor e era uma
folha honesta, apenas com uma gravura ou outra para mostrar a inauguração dos
candeeiros de iluminação pública no largo da Escola 21 ou a entrada para as
matinés do Cine São João.
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