22 de julho de 2020

Jesus converte-se à globalização e ao transporte aéreo


Quando eu era miúdo Jesus chegava ao Bairro de São João em Dezembro, por alturas do Natal. E, ano após ano, era por sistema o padre Abel que previamente tratava das boas vindas e do alojamento do próprio e da curta comitiva. A um dos lados da nave principal da igreja mandava erigir um presépio provisório, sem licença da câmara, acolhido sob a telha marselha do templo para, de alguma forma, o resguardar do nocturno frio exterior e da frequência das chuvas do planalto central do Huambo. E ainda do inclemente céu azul e definitivo que povoa os dias de África. Era pequena a comitiva: o próprio, a mãe com a criança ao colo, o padrasto carregando a enxó e a plaina, um burrito sem moscas, manso e submisso e uma vaquita que se mantinha teimosamente de cabeça baixa, debicando a palha seca onde o menino repousava de perninhas erguidas, róseas e rechonchudas.


Nunca soube como chegara porque no adro nunca vi carroças ou caravanas que o burro e vaca pudessem ter puxado desde muito longe e o assunto fica por esclarecer. Isto porque o próprio padre Abel, que jogou à bola connosco nas traseiras da igreja, que casou mais de metade das pessoas da minha geração e depois lhes baptizou os filhos, quando era mais preciso, resolveu deixar-nos a correr sozinhos atrás da trapeira e decidiu recolher-se a um descanso em que não há toques de alvorada às seis horas da manhã. Mas, pela situação do bairro e da própria igreja, era de presumir que a comitiva viesse dos lados do Bailundo ou do Sambo, tanto fazia, a estrada era de terra batida dos dois lados. Ficava apenas a dúvida se a mesma se deteria no Cuando para banhos nas águas da barragem e para que se dessedentassem o burro e a vaquita.

Agora Jesus chega no Verão, em plena canícula do mês de Julho, e não há gps que lhe valha para acertar nas coordenadas. Vai parar a um qualquer descampado, cercado de arame farpado, onde meia dúzia de fiéis de cabeça coberta estenderam lençóis vermelhos festejando o seu regresso a casa, Como se o Bairro de São João, mesmo com o padre Abel ausente, pudesse deixar cercar o recinto da igreja com arame farpado e permitir a mudança do presépio fosse para onde fosse. Mesmo que a comitiva, carregando mochilas às costas, viajasse de avião e viesse das vizinhanças da terra do papa e se furtasse às câmaras de televisão como São José se furtava aos microfones do Rádio Clube do Huambo e do devoto Sebastião Coelho.


Depois é de todo inadmissível a violação da privacidade de Jesus, nem no Bairro de São João alguma vez a Pide exigiu à comitiva o preenchimento do questionário habitual para saber de onde vinha, quanto tempo ia ficar e se trazia dinheiro suficiente para as despesas da estadia. Quanto mais vigiar-lhe as horas, revelando o local e o momento em que atravessava a fronteira e escarrapachar fotografias do avião com a legenda a dizer “Jesus está aqui dentro”. Só faltando mesmo acrescentar que lavava as mãos, punha a máscara, contornava os domínios do vírus ou mesmo qualquer pormenor mais íntimo e recatado que o bom senso e a devoção impedem sequer de mencionar. Também é verdade que “O Planalto” não era o “Correio da Manhã”, só se publicava duas vezes por semana e todo a uma só cor e era uma folha honesta, apenas com uma gravura ou outra para mostrar a inauguração dos candeeiros de iluminação pública no largo da Escola 21 ou a entrada para as matinés do Cine São João.


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